Perfil de um «vencedor na vida» (Cardeal Cerejeira)

António Rego Chaves

Diz a historiadora Irene Flunser Pimentel, quase a terminar esta sua obra: «Uma coisa é certa, o cardeal Cerejeira motivou, e motiva ainda hoje, tudo menos indiferença e neutralidade. Marcou toda uma época, mais ou menos coincidente com a do Estado Novo, no campo específico da Igreja, mas também no espaço político e social, enquanto cardeal-patriarca de Lisboa, desde 1930 a 1971.» De facto, não é possível, para várias gerações, dissociar de Salazar e do Estado Novo a personagem biografada pela autora – daí, porventura, a incapacidade sentida por muitos de ensaiar qualquer espécie de indiferença ou neutralidade perante os dois presumíveis amigos que tanto influenciaram a vida dos portugueses durante mais de 40 anos.

Ambos seminaristas, ambos docentes universitários, ambos com a ambição de ser «chefes», desde cedo haviam repudiado os parâmetros doutrinários e intelectuais dos «Vencidos da Vida» e dos republicanos, partilhando, tal como a autora salienta, «o mesmo conservadorismo, o mesmo catolicismo e, inicialmente, a mesma militância monárquica». Tendo ambos sempre brandido a mítica encíclica «Rerum Novarum», de Leão XIII, mostraram-se decididos partidários da ideologia corporativista de conciliação entre o capital e o trabalho e cegos negadores das evidências da luta de classes. Por último, nunca puseram em causa o regime de separação entre a Igreja e o Estado. Assim se foram fazendo e mantendo como «vencedores na vida».

Militando no Centro Académico de Democracia Cristã (CADC) e no Centro Católico Português (CCP), como Salazar, Cerejeira acabaria por se decidir, ao contrário do seu companheiro de quarto na juventude, pelo sacerdócio. Ambos atingiriam o «topo» das respectivas carreiras: Salazar, presidente do Conselho; Cerejeira, cardeal-patriarca de Lisboa. Talvez por esse facto, será muito difícil a qualquer cidadão não associar «o eminente purpurado» à polícia política, à censura ou à Guerra Colonial conduzidas por Salazar. Pelas suas palavras como pelos seus silêncios. Porque os longos silêncios do eclesiástico em relação ao regime que ajudou a escorar foram, não poucas vezes, sinais de inegável cumplicidade com o ditador.

Surpreenderá alguns que Manuel Gonçalves Cerejeira tenha sido, a par de tenaz anticomunista, frontal adversário do nacional-socialismo, tal como, aliás, Pio XI, nas suas encíclicas «Divini Redemptoris» e «Mit Brennender Sorge». Mas, como salienta Irene Flunser Pimentel, «o que preocupava Cerejeira, no regime nazi, não era o racismo anti-semita e as perseguições aos judeus, ciganos e opositores políticos, mas essencialmente os ataques à Igreja e à Acção Católica, na Alemanha e nos territórios por esta ocupada». Na verdade, o cardeal temia ver a Mocidade Portuguesa substituir-se ao escutismo católico, à semelhança do que se passara com a Juventude Hitleriana, que as associações católicas de jovens alemães foram forçadas a integrar. Quanto ao seu antijudaísmo, era o trivial entre o clero da época: dizia o povo judeu culpado do crime de «deicídio». Anote-se, por outro lado, a sua particular aversão ao protestantismo, que afirmava ter sido responsável pela primeira ruptura na unidade moral da civilização europeia, criada, «sob as asas maternais da Igreja», durante a Idade Média.

A causa de Cerejeira era, pois, bem menos a do cristianismo do que a da Igreja, entendida esta como uma instituição cujos privilégios era necessário defender, consolidar e expandir a qualquer preço – mesmo ao preço da traição à mensagem evangélica. Por isso, à semelhança da esmagadora maioria da hierarquia eclesiástica portuguesa, jamais se ergueria contra o regime que ajudara a fazer nascer e a defender na consciência dos crentes. O «seu» Concílio não era o Vaticano II de João XXIII e Paulo VI – mas o Vaticano I de Pio IX, o Papa da encíclica «Quanta Cura» e do «Syllabus». E a «sua» Igreja, essa, nunca a ousou conceber como «corpo místico de Cristo, em que o peso da autoridade eclesiástica deixava de ser o factor principal de legitimação e de relacionamento entre todos os seus membros». Considerava que a verdadeira reforma da Igreja passava pela adaptação do mundo ao Evangelho, e não pela adaptação do Evangelho ao mundo. Ou seja: a Igreja devia reformar-se – mas para continuar na mesma.

Bem sintomático do seu antiecumenismo foi que, após a discussão sobre liberdade religiosa ocorrida no Vaticano II, em 1965, o patriarca tenha enviado de Roma, aos diocesanos de Lisboa, uma carta onde considerava ilícito equiparar a liberdade da imprensa católica à de outras religiões, pois, segundo ele, só a Igreja Romana recebera «do próprio Jesus Cristo o mandado de evangelizar todas as nações». Na mensagem de Natal daquele ano, lida aos microfones da Emissora Nacional, Cerejeira desvendou o que de facto o preocupava na ocasião: o chamado «progressismo» católico. Reeditando o seu conservadorismo, advertia que, «se é certo que a letra sem o espírito mata, o espírito, sem a letra, corre o risco de enlouquecer.»

A 27 de Julho de 1970, morria Salazar. O cardeal, na cerimónia fúnebre realizada nos Jerónimos, pediu a Deus que atendesse as «súplicas» para que se abrissem «as portas do Paraíso» ao «servo António». Restava-lhe resignar, não sem que, num derradeiro assomo concordatário, tivesse advogado mais uma vez o impedimento do divórcio para os casamentos canónicos, que disse ser imposição da «consciência católica da Nação, verificada através de estatísticas.» Só o 25 de Abril revogaria o artigo em causa, pondo termo ao reinado das concepções que, com o Vaticano, havia ajudado a impor em Portugal. Mas o novo cardeal-patriarca, António Ribeiro, tido por anunciador de uma «primavera» da Igreja, revelar-se-ia um cerejeirista sem Cerejeira para os «católicos progressistas», tal como Marcelo Caetano se revelara já um salazarista sem Salazar para a «oposição democrática». E, no dia 1 de Agosto de 1977, falecia o velho cardeal no seu retiro da Buraca, depois de, principescamente, ter «vencido na vida».

Irene Flunser Pimentel, «Cardeal Cerejeira – O Príncipe da Igreja», A Esfera dos Livros, 2010, 361 páginas