Kafka ou o exílio na Terra

António Rego Chaves

Alertou Claude David para que tanto o «Diário» como a correspondência fazem parte inalienável da obra de Franz Kafka (1883-1924) e que o escritor tem de ser lido no seu todo. Acentuou, ainda, que «entre os seus diferentes modos de expressão, nenhum pode reivindicar uma dignidade maior que os outros». Na verdade, o autor de «América», de «O Castelo», de «A Metamorfose» e de «O Processo», as mais célebres das suas narrativas, é não só responsável pelo «Diário» como pela «Carta ao Pai», pelas «Cartas a Felice» e pelas «Cartas a Milena», indispensáveis para quem quiser entender integralmente a sua personalidade ou as raízes dos seus textos de ficção.

Se algumas dúvidas restassem, Elias Canetti desvaneceu-as em 1968, ao consagrar um brilhante ensaio, «O Outro Processo», às 750 páginas de cartas enviadas durante cinco anos por Kafka a Felice Bauer, a jovem de quem por duas vezes esteve noivo, ligando-se depois a Milena Jesenská e a Dora Diamant. Escreveu o Nobel da Literatura: «Falar aqui de documento seria demasiado pouco; a menos que se utilize o mesmo termo para os testemunhos da existência de Pascal, de Kierkegaard e de Dostoievski.» O repúdio do casamento por Kafka seria, aliás, ainda de acordo com Canetti, indissociável do «combate» contra o pai e significaria acima de tudo uma recusa do «estrangulamento» corporizado pela família, sendo o pai o elo mais forte de tal instituição. Acresce que casar-se teria como consequência inevitável renunciar à solidão que considerava indispensável à plena consecução do seu supremo objectivo: realizar-se como escritor.

Ao dividir a biografia de Kafka em quatro partes («Praga», «Felice», «Milena» e «Dora»), Nicholas Murray assume que o seu biografado foi, além de autor, um homem que não pode ser compreendido senão à luz da sua família de origem, bem como das relações com as mulheres que maior importância teriam assumido na sua existência.

Anotara Max Brod, referindo-se ao seu grande amigo: «A mãe de Franz adora-o, mas não faz a mínima ideia de quem o filho é e quais são as suas necessidades. A literatura é um ‘passatempo’! Meu Deus! Como se não devorasse os nossos corações, embora sejamos vítimas aquiescentes. (…) Todo o amor do mundo é inútil quando existe uma total falta de compreensão.» Quanto ao pai, a separação era radical: o comerciante Hermann Kafka e seu filho viviam em duas galáxias incomunicáveis, ainda que este o tivesse chegado a considerar «a medida de todas as coisas», antes de o passar a incluir na categoria dos «tiranos cujos direitos se baseiam na sua pessoa e não na razão». Dirá da incompreensão dos progenitores: «Fizeram-me mal por amor, o que torna ainda maior a sua culpa, pois quanto bem me teriam feito por amor…A minha educação lesou-me mais do que a todas as pessoas que conheço e mais do que posso imaginar.» As seguintes palavras, retiradas das «Cartas a Felice», pressagiam já o tema de «A Metamorfose»: «Não consigo viver com pessoas. Detesto em absoluto todos os meus parentes, não porque sejam perversos, não porque não os tenha em boa consideração… mas simplesmente porque são as pessoas com quem vivo em íntima proximidade. Trata-se apenas do facto de ser incapaz de me submeter à vida em comum… Encarando a questão de forma objectiva, gosto de toda a gente, mas a minha afeição não é tão grande que, proporcionadas as exigências físicas necessárias, me não sentisse incomparavelmente mais feliz a viver num deserto, numa floresta ou numa ilha, do que aqui no meu quarto, entre o quarto dos meus pais e a sua sala de jantar.»

Judeu e escrevendo em alemão, o checo Franz Kafka não poderia sentir-se senão exilado em Praga; ainda que se tenha interessado pelo sionismo e pela cultura do seu país natal, os seus modelos eram escritores alemães clássicos como Goethe ou Kleist. Por outro lado, o grau de Doutor em Direito em nada contribuiu para que se considerasse membro de um extracto social privilegiado e as funções burocráticas que desempenhou em companhias de seguros, ainda que relevantes, só reforçaram a sua visceral repulsa pela actividade profissional que o impedia de se consagrar por inteiro à sua única indesmentível paixão – não esta ou aquela mulher, mas a literatura. Diz Nicholas Murray: «A timidez e a reserva do adolescente vão-se metamorfoseando lentamente na terrível solidão existencial – a agonia autodilacerante – com que a sua escrita madura (e a sua posterior correspondência) enfrentou o mundo».

Tem quase 30 anos ensombrados pela família e pelo emprego quando conhece Felice. Ajudá-lo-á ela a libertar-se dos seus terrores? Nada disso: acenar-lhe-á com um derradeiro fantasma burguês, o do casamento e dos filhos, para além de evidenciar uma desoladora incompreensão da sua obra. Concluirá ele: «Não posso viver sem ela, nem com ela.» «Salva-o» a tuberculose que o vitimará, com a qual justificará a definitiva ruptura do noivado em finais de 1917. Ao contrário de Felice, Milena, com quem começa a corresponder-se em 1920, compreende muito bem – será que demasiado bem? – a escrita de Kafka. Mas é casada e não está disposta a deixar o marido. Sinistramente lúcida, profetizará a Max Brod: «O Franz não tem capacidade para viver. O Franz nunca há-de ficar bom. O Franz vai morrer em breve.» (…) «É como um homem nu numa multidão de pessoas vestidas.» Em 1923 Kafka conhece Dora – e a felicidade possível para quem se encontra à beira do fim. Agonizará, vivendo com a mulher amada menos de um ano, até que a sua morte os separará. Reformado por doença, conquistara enfim um lar e uma vida independente, embora não isenta de dificuldades económicas. Milena inscreverá no obituário estas palavras definitivas: «Era clarividente, demasiado sábio para viver e fraco em demasia para lutar. Mas essa fraqueza era a dos seres nobres e admiráveis, incapazes de lutar contra o medo, os mal-entendidos, a maldade e a mentira, que reconhecem a sua fraqueza desde o início, rendem-se, e assim provocam o opróbrio do vencedor.» Quase tudo ficava dito sobre o homem Kafka e seu tão breve quanto angustiado exílio na Terra.

Nicholas Murray, «Kafka», Publicações Europa-América, 2006, 405 páginas