Intelectuais e fascismo (Alastair Hamilton)

António Rego Chaves

Serão os intelectuais gente diferente dos outros humanos? É bem sabido que não, apesar de a alguns dos mais célebres, talvez devido à sua reconhecida inteligência, cultura ou criatividade, o comum dos mortais atribuir mais qualidades morais do que possuem. Em boa verdade, tal como a quase totalidade dos seus semelhantes, eles revelam-se ora íntegros ora oportunistas, ora bondosos ora cruéis, ora mesquinhos ora capazes de nobres atitudes, ora corajosos ora cobardes – muitas vezes em função de contextos políticos que lhes são alheios e perturbam a sua entrega ao que consideram ser a sua «missão» intransmissível: pensar, e se possível bem.

Intelectuais antifascistas, decerto que existiram muitos – mas talvez não os suficientes – durante as ditaduras de Mussolini e Hitler, em Itália, na Alemanha, em França e na Grã-Bretanha, mas não é deles que esta notável obra de Alastair Hamilton nos fala. Fala-nos, sim, dos que, naqueles quatro países europeus, prepararam, aderiram ou colaboraram com o fascismo, desde 1919 até ao fim da Segunda Guerra Mundial. O quadro resulta quase sempre confrangedor, sobretudo devido à cumplicidade, não poucas vezes muito activa, de tais personagens com o autoritarismo, a delação e o antijudaísmo a que se convencionou chamar, sem rigor, «anti-semitismo».

Evitemos um pecado capital a que os especialistas chamam «anacronismo histórico»: como releva o autor, «os escritores conhecidos pelo seu ódio à democracia não tinham razões para crer que os seus incitamentos à violência iriam mais longe do que o papel sobre o qual se exprimiam». Evitar-se-á assim cometer o erro de considerar que, nos inícios do século XX, alguém se terá tornado num apologista da aberração nazi-fascista.

Foi entre os antidemocratas partidários de um Estado revolucionário e autoritário que, na opinião de Alastair Hamilton, se recrutaram os verdadeiros fascistas: «homens como Malaparte e Drieu la Rochelle, assim como um grande número de intelectuais comunistas. Eles não estavam apenas convencidos de que o fascismo era revolucionário, mas [acreditavam] que era de esquerda». A verdade é que, fosse ou não revolucionária a teoria, o fascismo revelar-se-ia reaccionário enquanto regime político. Em Itália tal como na Alemanha, nem modificou o sistema de classes sociais nem destruiu o capitalismo. «Nos dois países, o núcleo revolucionário do movimento, os ‘squadristi’ e as SA, tornou-se inútil a partir do momento em que o ditador teve ocasião de o suprimir. O corporativismo nunca foi aplicado na Alemanha e falhou em Itália, ou reduziu-se a não ser senão um meio de conservar a antiga hierarquia.»

Nos quatro países estudados, o desfile das mais conhecidas personalidades intelectuais em alguma época seduzidas pela teoria ou (e) pela prática dos regimes do «Duce» e do «Führer» foi impressionante, tanto pela quantidade como pela qualidade: em Itália, além de Malaparte, acima citado, Marinetti, Ungaretti, Toscanini, d’Annunzio, Gentile, Pirandello, Papini; H. S. Chamberlain, Gottfried Benn, Heidegger, Carl Schmitt, Richard Strauss, Gerhart Hauptmann, na Alemanha; Céline, Giraudoux, Jouhandeau, Sacha Guitry, Jacques de Lacretelle, o já referido Drieu la Rochelle, Robert Brasillach, Alphonse de Châteaubriant, Lucien Rebatet, Abel Bonnard, Jean Cocteau, em França; na Grã-Bretanha, Henry Williamson, Belloc, Chesterton, Bernard Shaw, T. S. Eliot, Yeats, Ezra Pound, Evelyn Waugh, Roy Campbell, Yyndham Lewis. O panorama torna-se, de facto, aterrador.

Como é vulgar dizer-se, «cada caso é um caso»: ou seja, os motivos de Curzio Malaparte não eram os mesmos que moviam Drieu la Rochelle, ou os motivos de Robert Brasillach não eram os mesmos que impulsionavam Malaparte e Drieu. Seria inadequado – e erróneo, sob pena de nunca compreendermos as razões das suas opções políticas – chamar a qualquer deles «um simples oportunista». Isso é que decerto nenhum deles foi e essa constitui talvez a zona mais controversa de toda a questão da adesão de alguns brilhantes intelectuais ao fascismo durante a primeira metade do século XX. Por mais vincadas que sejam as nossas divergências em relação ao pensamento de qualquer deles – e certamente que o são – torna-se necessário, autor a autor, distinguir ambição de convicção, vontade de poder do desejo de trilhar uma «via justa», oportunismo de «fé» utópica.

Todos eles foram homens moralmente tão vulneráveis como quaisquer outros, mas possuíam porventura um dom especial que cultivavam com carácter prioritário, um dom estranho às aptidões mais vulgares: o talento, por vezes fulgurante. Por isso, quando hoje os evocamos, evocamos sobretudo as suas obras, que em não poucas ocasiões nos fizeram descobrir novos mundos e nos fascinaram, ajudando-nos a sair do entediante ramerrão das ideias feitas e «indiscutíveis» que norteiam palavras e actos dos indivíduos em sociedade. Os caminhos que percorreram até ao fascismo – sem que tal implique justificar as consequências dos seus actos – foram demasiado solitários para que lhes possamos aplicar uma regra geral que implicaria a condenação liminar das suas atitudes políticas.

Procuraremos, em próximos artigos, neste espaço, observar as trajectórias de Curzio Malaparte, Drieu la Rochelle e Robert Brasillach. Não sabemos se o leitor quererá acompanhar-nos, ignoramos mesmo se teria alguma curiosidade de saber como foi possível que eles tivessem avalizado uma ideologia hoje condenada quase por unanimidade nos países ocidentais. Temos, porém, uma certeza: a de que, enquanto não se compreender o que levou intelectuais a considerar válidas as concepções veiculadas pelos regimes de Mussolini e de Hitler, nunca estaremos livres de as ver ressurgir com vigor, em épocas de crise económica, social e política como a actual, nas sociedades europeias consideradas «democráticas» em que vivemos.

Alastair Hamilton, «L’Illusion fasciste», Gallimard, 1973, 335 páginas