Miguel Real («Eduardo Lourenço e a Cultura Portuguesa»)

No reino da heterodoxia

António Rego Chaves

Ao intitular «Heterodoxia» o seu primeiro livro, publicado em 1949, Eduardo Lourenço descrevia já o seu luminoso percurso: o de alguém que recusa qualquer espécie de obediência – mesmo em relação ao seu próprio pensamento. Esperemos que apressados «discípulos» não transformem em escolástica – no caso, não seria a clássica «pedagogia de uma ortodoxia», mas a insensata fossilização de uma vivíssima heterodoxia – o que nunca foi senão liberdade de questionar, negar e, quando possível, dizer que sim.

Os três «prólogos» que Eduardo Lourenço redigiu para «Heterodoxia» não explicarão tudo, mas decerto explicam muito acerca das raízes da sua necessidade de se definir em relação às duas «ortodoxias» dominantes entre a intelectualidade portuguesa na década de 40 do século XX – a católica e a marxista. Tomar partido, nessa época, seria quase inevitável, porque catolicismo queria dizer Estado Novo e Salazar, ao passo que marxismo significava União Soviética e Estaline. Posto assim o problema, de forma maniqueísta, haveria que detectar onde estava o Bem e onde estava o Mal. E quem escolhia o marxismo ou recusava o dilema, porventura em busca de uma utópica «terceira via», não escolhia em liberdade – a polícia política lá estaria para impedir qualquer contestação da «ordem social estabelecida».

Neste contexto – que seria desejável alguns jovens ensaístas encandeados pelo anacronismo histórico nunca perderem de vista – o estatuto do cidadão que se revelava marxista ou anticatólico era bem diferente do que esperava aquele que se definia como católico e anticomunista. O primeiro dava um passo firme na direcção dos calabouços do Regime, enquanto o segundo se perfilava como candidato às suas prebendas. Quando se fala de cultura, ideias, filosofia, é bom que não se esqueça tudo quanto estava então em jogo, incluindo a liberdade. Um último alerta, que também não nos parece despiciendo: exercer, na época em causa, a crítica pública visando a URSS, o comunismo ou autores marxistas seria uma atitude legítima – mas não de acordo com a ética dos que entendiam que só se deveria atacar em público um adversário se a ele, também em público, lhe fosse possível defender-se.

«Heterodoxia não é o contrário de ortodoxia, nem de niilismo, mas o movimento constante de os pensar a ambos. É o humilde propósito de não aceitar um só caminho pelo simples facto de ele se apresentar a si próprio como único caminho, nem de os recusar a todos só pelo motivo de não sabermos em absoluto qual deles é na realidade o melhor de todos os caminhos» – escrevia Eduardo Lourenço em 1949. E, dezassete anos depois, acrescentava: «Para ser claro, a nossa confessada heterodoxia não vive mesmo de outra coisa senão do diálogo que Catolicismo e Marxismo travam no nosso espírito.» (…) «O terror e o anátema cederam o lugar à ‘coexistência pacífica’ e ao diálogo. O Catolicismo encontrou na pessoa do Papa João XXIII uma dessas palavras de fogo de que havia perdido o segredo: a Igreja não tem inimigos.» Isto quando acabava de passar pelo trono de Pedro um papa que, como anotou Hannah Arendt, «era cristão»…

Salienta Miguel Real que «a principal característica do pensamento de Eduardo Lourenço, a partir da segunda metade da década de 1950, reside, pela negativa, no abandono dos estudos filosóficos de carácter académico, enquanto especialização universitária e, pela positiva, no empenhamento estético-cultural que rodeia a sua actividade como pensador que assume a história da literatura portuguesa como principal fonte de inspiração». Já em 1951, aliás, se demarcara daqueles a quem chamou «os racionalizadores, os ordenadores da coerência sintáctica, os cientistas da abstracção sem a carne e o sangue da história e do sofrimento do homem (…) neste nosso século em que a razão professoral invadiu o homem.» Uma frase diz quase tudo: «A questão [Fernando] ‘Pessoa’ é, para Eduardo Lourenço, do domínio ontológico e para a Universidade do domínio literário». Segundo o autor, a consciência de uma «ínsita irrealidade do mundo», adquirida no profundo encontro com a poesia de «Orpheu» («a experiência mais radical de quantas a história da nossa poesia dá conta») levá-lo-á a encarar a Poesia como «uma realidade absoluta, cujo estatuto substitui hoje, na consciência dos povos, o conteúdo das tradicionais mitologias e religiões europeias».

Se há para Eduardo Lourenço um caso paradigmático, é o de Antero: «Kierkegaard, seu companheiro de inquietação, resistiu à ‘abstracção’, fundando uma filosofia existencial, Antero vazou idêntica consciência trágica na poesia: ‘não se podia ser filósofo em Portugal – a não ser por um mimetismo impensável – com a naturalidade com que Hegel ou aqueles que o jovem Antero leu com uma paixão espiritual sem limites o eram nas suas respectivas culturas. Contra esta fatalidade – que o foi, cultural e humana – lutou, em vão, Antero.’» Comenta Miguel Real: Só se podia ser poeta – tradição cultural portuguesa – e Antero foi-o.» Se non è vero…

Neste denso e bem documentado trabalho, aborda o autor o pensamento de Eduardo Lourenço em quatro capítulos consagrados às questões cultural, política, estética e filosófica. «Orpheu», a «Presença», o neo-realismo, o racionalismo de António Sérgio, a «Filosofia Portuguesa» de Álvaro Ribeiro, o surrealismo, a «Renascença Portuguesa» e «A Águia», o existencialismo, Vergílio Ferreira, «o catolicismo dogmático de Gonçalves Cerejeira e o comunismo dogmático de Álvaro Cunhal» são perspectivados à luz da heterodoxia do nosso mais celebrado ensaísta contemporâneo.

Adverte Miguel Real: «O nosso ensaio debruça-se exclusivamente sobre as duas primeiras fases da heterodoxia: 1.ª fase: heterodoxia aplicada à identidade cultural de Portugal: 1949-1978; 2.ª fase: heterodoxia aplicada à identidade cultural da Europa: 1980-1997. A 3.ª fase, a heterodoxia aplicada à cultura americana, será por nós objecto de um estudo a publicar com o título ‘O Último Eduardo Lourenço’.» Estamos à espera.

Miguel Real, «Eduardo Lourenço e a Cultura Portuguesa», QuidNovi, 2008, 415 páginas