Eutanásia e despesa pública

António Rego Chaves

A lei francesa de 22 de Abril de 2005 relativa ao fim da vida estabelece que «quando uma pessoa, em fase terminal ou avançada de afecção grave ou incurável, decide limitar ou pôr termo a todo o tratamento, o médico respeitará a sua vontade, depois de a ter informado acerca das consequências da sua escolha». Reafirma a proibição da eutanásia activa, embora condene a obstinação terapêutica «não razoável» e permita aliviar a dor mesmo se e quando o tratamento pode abreviar a vida. É o «direito de deixar morrer» que já Baudelaire reivindicava ao propor que se adicionasse à Carta dos Direitos Fundamentais o direito de nos retirarmos deste mundo.

Todos os franceses maiores na plena posse das suas faculdades mentais adquiriram, ao abrigo da lei acima referida, a possibilidade de redigir directivas antecipadas para o caso de um dia não se encontrarem em condições de exprimir a sua última vontade. Reconhece-se desta forma que o assunto é demasiado sério e pessoal para ser deixado ao arbítrio de familiares ou equipas médicas e consagra-se a legitimidade de dizer adeus à vida quando esta é encarada pelo doente como indigna de ser vivida, ultrapassando-se assim quaisquer considerações de ordem clínica, moral ou religiosa.

No debate «Deve a eutanásia ser legalizada?» intervêm Alain Houziaux, pastor protestante, o filósofo Comte-Sponville, Marie de Hennezel, psicóloga, e o médico Axel Kahn. A publicação da obra em Portugal peca por alguma desactualização, pois os argumentos expostos tiveram como pano de fundo a moldura jurídica vigente em 2004, ou seja, antes da adopção da disposição legal acima referida que veio permitir ao doente recusar a alimentação ou a hidratação artificiais. O tema, porém, esse talvez seja agora mais actual do que nunca nos EUA ou nos países da UE, onde cada vez mais idosos, muito deles sofrendo de doenças em fase terminal, se amontoam em hospitais e no que eufemisticamente vamos apelidando de «lares», quando não agonizam a sós, em condições sub-humanas, nas mesmas casas onde porventura antes viveram com os seus entes queridos, já desaparecidos ou indiferentes, hoje, à sua sorte.

André Comte-Sponville refere-se a dois tipos de eutanásia, a passiva (interrupção do tratamento) e a activa (administração de um medicamento com o fim de causar a morte). Axel Kahn e Marie de Hennezel recusam esta distinção, reservando o termo «eutanásia» apenas à eutanásia activa. Mas a destrinça não é simples, como por exemplo quando se alivia a dor do doente aumentando gradualmente as doses de morfina, mas acabando por lhe causar a morte. Estará nesses casos o médico a «deixar morrer» ou a «ajudar a morrer»? Entre cuidados paliativos e «cocktails» letais a distinção será por vezes muito difícil de estabelecer, mesmo procurando averiguar quais as reais intenções do clínico e recorrendo a rigorosos critérios científicos.

Escreve Comte-Sponville: «Os moribundos custam cada vez mais caro, em função do tempo da agonia, do local onde se encontram (cada vez mais nos hospitais), dos cuidados de que necessitam ou se lhes impõem (um médico explicou-me que, em média, metade do que custamos à Segurança Social durante toda a vida será despendida durante os nossos últimos seis meses de vida…)» E, mais adiante: «Um partido político que quisesse legalizar a eutanásia ver-se-ia sob suspeita de querer ‘eutanasiar’, sistematicamente, os grandes idosos ou os deficientes graves, ou seja, todos os que custam mais à sociedade e que não produzem, nem produzirão.» Torna-se assim evidente que todo os cuidados são poucos e que estes aspectos não deverão ser descurados por qualquer legislação, dado que os doentes sem capacidade económica para pagar os cuidados paliativos constituem um dos sectores mais vastos e desprotegidos de qualquer sociedade. Mas, se a eutanásia voluntária parece não levantar hoje problemas insuperáveis, que dizer da eutanásia não voluntária, por exemplo a praticada em recém-nascidos cuja sobrevivência se afigura impossível mesmo a curto prazo, nos doentes em estado de coma ou sofrendo da doença de Alzheimer em fase terminal? Existirá para o médico o «dever de substituição» de que falou o filósofo o filósofo Marcel Conche? «A encará-lo – opina Comte-Sponville – nunca serão de mais as precauções nem os limites que se criarem, nunca serão excessivos a concertação, a colegialidade, os controlos. É uma matéria extremamente difícil e dolorosa. Mais uma razão para que a debatamos.» Admitida a opção pela eutanásia voluntária numa época da vida em que o doente está ainda em estado de manifestar a sua escolha, só ficam excluídos os recém-nascidos, as crianças, a generalidade dos menores. Não será tudo, mas não é pouco.

Axel Kahn frisa que «os idosos são os primeiros candidatos ao suicídio e, por vezes, ao suicídio assistido», levantando a questão de averiguar em que medida uma tal escolha é verdadeiramente livre. Haveria que tratar com eficácia a dor, ao mesmo tempo que se criariam ao doente condições psicológicas para não se sentir abandonado por aqueles que têm o dever de o tratar e pelos seus familiares ou amigos mais próximos. Quanto a Marie de Hennezel, circunscrevendo o termo «eutanásia» ao acto de facultar intencionalmente a morte, entende que existe uma barreira ética entre parar os cuidados activos para uma cura impossível e aliviar a dor, por um lado, e dar a morte, por outro, dado que esta última atitude não decorre da função de tratar – motivo pelo qual recusa a legalização, seja em que circunstâncias for, do acto de dar a morte.

Conclui Comte-Sponville: «Estamos de acordo quanto ao essencial: os cuidados paliativos valem mais do que a obstinação terapêutica e do que a eutanásia activa. Todas as vezes que sejam suficientes, é neles que se deve apostar. Mas isto nada diz sobre a fiabilidade financeira da sua generalização.» Aumento da despesa pública – eis o que o poder político jamais esquecerá ao abordar o sagrado direito dos cidadãos aos cuidados paliativos. Triste conclusão para esta plêiade de humanistas do século XXI…

«Deve a eutanásia ser legalizada?», Alain Houziaux, André-Comte Sponville, Marie de Hennezel e Axel Kahn, Campo das Letras, Dezembro de 2005, 81 páginas