O cidadão Rousseau (Mensário «Le Magazine Littéraire»)

António Rego Chaves

A França, a Suíça, a Turquia, a Grã-Bretanha, toda a Europa, enfim, se prepara para comemorar, em 28 de Junho de 2012, o tricentenário do nascimento de Rousseau (1712-1778). Anunciam-se em Paris, Genebra, Istambul, Leeds, leituras, concertos, exposições, colóquios, edições. «Le Magazine Littéraire» antecipa-se e sai com um «tema de capa» dedicado ao filósofo, ficcionista e ilustríssimo cidadão genebrino. Maxime Rovere comenta: «Se 2012 deve ser o ano Rousseau, isso não se deve apenas a um acaso de calendário: nunca tivemos tanta necessidade dele.» Será que isto quer dizer que nunca tivemos tanta necessidade de cidadania… europeia?

Ilustríssimo cidadão foi, de facto, e vários autores deste «dossier» o relevam. Partindo do célebre «Emílio», o livro que consagrou à «educação natural», logo nos apercebemos, como anota Cécile Nail, do muito que o separava de outros enciclopedistas e o transformou na «sombra das Luzes» emitidas pelos «Philosophes», pelo menos no que respeita à tese optimista que Condorcet sustentaria em 1795 no «Esboço de um Quadro Histórico dos Progressos do Espírito Humano»: os companheiros de d’Alembert, seguindo as ideias de Locke em «Some Thoughts concerning Education», preconizavam disciplinar e instruir os mais novos tão cedo quanto possível. Rousseau rema firmemente contra tal corrente e não se cansa de dizer que a criança não é um adulto em miniatura, advogando que as diferenças entre uma e outro sejam cultivadas tanto tempo quanto possível: «A primeira educação deve ser puramente negativa. Consiste, não em ensinar a virtude ou a verdade, mas em preservar o coração do vício e o espírito do erro. Se puderdes nada fazer e nada deixar fazer; se puderdes conduzir o vosso filho são e robusto até aos doze anos, sem que ele saiba distinguir a mão direita da mão esquerda, desde as vossas primeiras lições os olhos do seu entendimento abrir-se-ão à razão; sem preconceitos, sem hábitos, não haverá nada nele que possa contrariar os efeitos dos vossos cuidados. Em breve ele se tornará nas vossas mãos no mais sábio dos homens; e, começando por nada fazer, tereis feito um prodígio de educação.»

Para lá das revolucionárias teses pedagógicas de Rousseau, talvez importe aqui também salientar um dos mais acentuados traços distintivos da sua personalidade: a interiorizada incompatibilidade com as sociedades onde viveu, a sua «antropofobia», ou talvez mesmo a sua «misantropia», para usarmos dois termos consagrados por Kant na «Crítica da Faculdade de Julgar» a fim de designar, respectivamente, o medo que alguém sente dos seus semelhantes, por os considerar seus inimigos, e o ódio com que os contempla. Na verdade, o filósofo genebrino pensava que as sociedades corrompidas e corruptoras que tivera oportunidade de conhecer ou de que recebera notícia estavam longe de oferecer as condições necessárias para formar homens livres, justos e virtuosos, que se tornariam capazes de ser úteis aos seus concidadãos e se dedicariam a trabalhar para o bem comum.

A esta luz, como sustenta André Charrak, «O Contrato Social» não seria tanto um programa de reforma radical quanto «o instrumento de um diagnóstico sem complacências, o padrão que permite avaliar a degenerescência dos governos». Como escreveu um seu contemporâneo, François Favre, Rousseau «quer não só ser livre, mas que todos o sejam com ele, mesmo o seu cão, por isso nunca o chama, a fim de que ele se aproxime de si apenas por amizade e com gosto». Dizia, nas «Confissões»: «Sempre tive um prazer especial em amansar os animais, sobretudo aqueles que são medrosos e selvagens. Parecia-me encantador inspirar-lhes uma confiança que nunca traí. Quis que eles me amassem em liberdade.»

Seria à luz da liberdade política que valorizaria os costumes dos povos. Assim, louvava os hábitos anárquicos dos polacos mas criticava os dos franceses, sobretudo os dos parisienses, que classificava como servis, cheios de medo do ridículo e prontos a vender-se. Não era a paz social – essa «paz podre» a que por vezes também se chamou «paz dos cemitérios» – que Jean-Jacques Rousseau mais prezava, mas a liberdade. Ao contrário do que se passava com Diderot e Voltaire, como salienta Gabrielle Radica, os costumes eram para o nosso autor um problema puramente político.

Sendo um solitário e um individualista, Rousseau manifesta-se, porém, patriota. Nas «Considérations sur le gouvernement de Pologne», dirá que, sem patriotismo, «a liberdade é apenas uma palavra vã e a legislação uma quimera». Acreditava que o amor da liberdade e da igualdade é necessário à aplicação dos princípios políticos e que o sentimento de pertencer a uma mesma comunidade, ou seja, a convicção de que o Estado é algo feito por todos os cidadãos e para todos os cidadãos, é inseparável da inclinação de alguém fazer sua a causa de bem público, devotando-lhe as suas energias.

Explicita Géraldine Lepan: «A pátria não é a terra natal, não equivale ao ‘país’, termo com que Rousseau designa a presença de instituições mas não o reinado da lei, apenas o do seu simulacro.» E transcreve: «Não são as muralhas nem os homens que fazem a pátria: são as leis, os costumes, o governo, a constituição, a maneira de ser que resulta de tudo isso. A pátria encontra-se nas relações do Estado com os seus membros; quando essas relações se modificam ou se reduzem a nada, a pátria deixa de existir…»

Foi este «Newton do mundo moral», como lhe chamaria Kant, quem assim definiu o «pacto social» pelo qual o indivíduo se integra numa comunidade e celebra com ela um contrato: «Cada um de nós põe em comum a sua pessoa e todo o seu poder sob a suprema direcção da vontade geral, e nós recebemos em corpo cada membro como parte individual do todo. Cada associado se une a todos e a ninguém se une em particular; só obedece deste modo a ele próprio e fica tão livre como antes.» Bela fórmula para associar o individualismo às irrecusáveis responsabilidades da cidadania...

«Le Magazine Littéraire», Dezembro de 2011, 106 páginas