Que livros mudaram o mundo?

António Rego Chaves

Tomando uma meritória iniciativa, a Câmara Municipal de Oeiras levou a cabo, ao longo de 2004, uma série de conferências de reputados especialistas sobre «10 Livros que Mudaram o Mundo». Pena que o título não seja rigoroso (são doze as obras estudadas e de nem todas elas se pode dizer que «mudaram o mundo»). Mas persistem a bondade das intenções e o resultado alcançado, sem sombra de dúvida positivos.

Eis os doze livros, respectivos autores e conferencistas: «Breve História do Tempo», de Stephen Hawking (Carlos Fiolhais); «O Príncipe», de Maquiavel (Adriano Moreira); «A Interpretação dos Sonhos», de Freud (Amaral Dias); «Manifesto Comunista», de Marx e Engels (Pacheco Pereira); «Odisseia», de Homero (Frederico Lourenço); «A Origem das Espécies», de Darwin (Luís Vicente); «A República», de Platão (Trindade Santos); «A Riqueza das Nações», de Adam Smith (José Luís Cardoso); «O Erro de Descartes», de António Damásio (Gonçalves Ferreira); a Bíblia hebraica (Esther Mucznick); a Bíblia cristã (Santos Vaz); o Alcorão (David Munir).

Ninguém duvidará de que a Bíblia cristã, o Alcorão ou o «Manifesto Comunista» estiveram na origem de grandes mudanças no nosso planeta – basta referir o multissecular confronto entre ocidentais e muçulmanos, que por vezes ambas as partes pretenderam justificar utilizando álibis como «guerra justa» ou «guerra santa», ou a Revolução de 1917 e as suas consequências geopolíticas. O mesmo não diríamos da Odisseia, obra-prima que apenas «lê o mundo» (Frederico Lourenço) ou da Bíblia hebraica, que nunca levou à «judaízação do mundo» (Ester Mucznick). Restam-nos sete livros: «A História do Tempo» e «O Erro de Descartes», a que seria prematuro conferir mais do que o estatuto de recentes e brilhantes «best-sellers» consagrados à divulgação científica; «O Príncipe», que teve o inegável mérito de nos dar a entender com clareza «a luta pela aquisição, manutenção e exercício do poder político», (…) sem recorrer à ética ou à jurisprudência» (Adriano Moreira); «A Interpretação dos Sonhos» e «A Origem das Espécies», que nos revelaram as características psíquicas e a ascendência mais remota dos humanos; «A República», que nos indicou um caminho para construir a «cidade justa», mas infelizmente nada mais conseguiu do que evidenciar, 2400 anos passados, a nossa incapacidade de sair da Caverna em direcção à luz do Sol; «A Riqueza das Nações», que constituiu acima de tudo uma lúcida descrição do liberalismo económico, tendo desempenhado um papel crucial na fixação do percurso disciplinar autónomo da economia política, ao separá-la da moral.

Em síntese: se esta obra se intitulasse «Doze Livros que Abalaram o Mundo», decerto teriam sido evitados os nove «deslizes» ocorridos, ainda que a violência «sísmica» da Bíblia cristã, do Alcorão e do «Manifesto Comunista» ofuscasse o impacte dos outros textos. Está fora de causa abordar aqui o conteúdo destas 560 páginas de interessantes reflexões sobre tão importantes temas. Lamenta-se, contudo, que países como a China, a Índia ou o Japão pareçam, dada a sua ausência, não ter produzido durante milénios qualquer livro digno de ser seleccionado pelos organizadores desta louvável iniciativa. Aponte-se telegraficamente, no que a Freud concerne, que a interpretação dos sonhos revelou «toda a estrutura paradigmática do funcionamento mental para a Psicanálise» (Amaral Dias); que «o cristianismo da Bíblia é o molde fundamental da cultura ocidental, desde as margens do Jordão até às costas da Califórnia e à Patagónia» (Santos Vaz), pelo menos até à Revolução Francesa, mas que só com a invenção da tipografia «a Bíblia sai da Igreja ou do mosteiro para se tornar acessível ao grande público» (Esther Mucznick); que «o estudo das Humanidades começou a ser encarado como um luxo» numa sociedade sedenta de desenvolvimento e produtividade, que «voltámos a ser engolidos pela Caverna, se alguma vez dela saímos» e que «a única forma de educar é pela reflexão, visando o desenvolvimento da inteligência e a promoção do saber, individual ou colectivo» (Trindade Santos); que, segundo António Damásio, «a alma e o espírito são em toda a sua dignidade e dimensão (apenas) estados complexos e únicos de um único organismo» (Gonçalves Ferreira).

Transcrevamos, em abono do autor do «Discurso do Método»: «Damásio critica o facto de Descartes perspectivar o acto de pensar como uma actividade separada do corpo. Todavia, esta afirmação não é completamente pacífica, uma vez que o próprio Descartes, como é aliás sabido, tentou superar este dualismo, promovendo a ideia de coexistência entre corpo e mente através da função atribuída à glândula pineal. Podemos, portanto, concluir que a ideia de uma coisa pensante completamente independente da sua corporeidade é, não só para Damásio, como igualmente para Descartes, algo de difícil solução. Muitas outras objecções poderão ser levantadas nesta matéria e, nomeadamente, ao olhar damasiano da obra de Descartes.» (Gonçalves Ferreira).

Talvez tivesse sido cedo de mais para o eminente neurobiologista António Damásio «crucificar» Descartes e, com ele, qual elefante em loja de louças, o idealismo transcendental de Kant e a egologia transcendental de Husserl. Assim: a) nas «Meditações Metafísicas», Descartes deixa claro, não só que o espírito se distingue do corpo, mas também «que lhe está tão estreitamente ligado que compõe com ele uma espécie de unidade»; b) o pretenso «erro» de Descartes foi discutido pelos seus contemporâneos, entre os quais o jansenista Antoine Arnauld, tendo o visado esclarecido que repudiava qualquer separação radical entre corpo e espírito; c) boa parte dos últimos anos da vida de Descartes foi gasta a insistir na interdependência entre corpo e espírito, equivalente a uma «união real e substancial» entre a «res extensa» e a «res cogitans»; d) associações psicofísicas, formulações pré-darwinianas e antecipações pavlovianas presentes na obra de Descartes desautorizam, sem margem para dúvidas, a errónea versão que o prestigiado cientista português apresentou do pensamento do grande filósofo francês. Fiquemos por aqui…

«10 Livros que Mudaram o Mundo», vários autores, organização e dossiers de Ana Isabel Santos e Ana Paula Jardim, Quasi Edições, 2005, 560 páginas