A «coisa» de Immanuel (Kant)

António Rego Chaves

Haverá muita gente interessada em conhecer algo sobre a inexistente vida sexual de Immanuel Kant? Se calhar há – ou, pelo menos, haverá mais do que uma meia dúzia de milhares de «lunáticos» que ainda não perderam a esperança de acabar de ler e digerir a «Crítica da Razão Pura». Assim sendo, justifica-se – em termos da lei da oferta e de procura – a edição destas «famosas conferências proferidas por Jean-Baptiste Botul no Paraguai, em 1946, perante a comunidade neokantiana de Nueva Königsberg».

Mas – perguntamo-nos todos – quem foi Botul? Dizem-nos que nasceu em 1896, que conheceu Baden-Powell, que se encontrou com Zapata e Pancho Villa, que protagonizou um «caso» sentimental com a princesa Maria Bonaparte, que manteve correspondência amorosa com Lou-Andréas Salomé, que privou com Stefan Zweig, que desempenhou as funções de ajudante de campo particular de Malraux, que polemizou com Jean Cocteau e que morreu no esquecimento geral, em 1947, não deixando um único escrito filosófico, por ser adepto da tradição oral. Personagem fascinante? Levante-se uma ponta do véu que a encobre: consultando o jornal «Le Monde» do dia 7 de Janeiro de 2000, ficamos a saber que estes textos são traduzidos, apresentados e anotados por Frédéric Pagès, licenciado em Filosofia, jornalista do Canard Enchaîné e presidente da Associação dos Amigos de Jean-Baptiste Botul. Em suma, trata-se de um simples heterónimo do atrevido colaborador do controverso semanário satírico francês.

Ora bem, que teria ido pregar Pagès-Botul aos «kantianos integristas» da pretensa Nueva Königsberg? Fundamentalmente, que, em sua opinião, «a vida sexual de Kant é um dos problemas mais importantes da metafísica ocidental». Acrescentaria, mais tarde, que «a sexualidade de Kant é o principal caminho que conduz ao conhecimento do kantismo» e que esta abordagem lhe permitira ler a «Crítica da Razão Pura» enquanto «drama e autobiografia».

Definidos os parâmetros do «botulismo» – que não seria apenas uma doença grave transmitida por comida enlatada, assim como por algumas carnes, conservas e enchidos –, Pagès-Botul considera que «o kantismo é um modo de vida, antes de ser uma doutrina. É um conjunto de gestos e atitudes mais do que uma colecção de textos ou um sistema.» Socorrendo-se do exemplo de filósofos que, como Kant, optaram pelo celibato, escapando assim aos encargos com a família e a toda a espécie de preocupações domésticas – Descartes, Espinosa, Pascal, Leibniz, Malebranche, Gassendi, Hobbes, Hume, Voltaire, Schopenhauer, Nietzsche, Kierkegaard, Sartre –, o autor revela-nos que o professor de Königsberg estava convicto de que os homens solteiros vivem mais tempo e de que «a despesa espermática do coito não é de somenos importância no enfraquecimento prematuro». (…) «Conservar o seu esperma é o mesmo que tomar um perpétuo elixir da juventude.» (…) «Os fluidos reciclam-se. Eles não nos envenenam. Pelo contrário, vivificam-nos. Até os mais humildes. Saliva, suor, esperma: é preciso guardar tudo.»

Segue-se uma original definição de um conceito fundamental da filosofia kantiana, o de «coisa em si»: afinal, não se trata, como se ensina por todo mundo, do que ultrapassa as possibilidades do conhecimento tal como foram delineadas na Estética Transcendental e na Analítica Transcendental da «Crítica da Razão Pura». Nada disso, a «coisa em si é…o sexo, só o sexo, nada mais que o sexo. «Nós não podemos conhecer a coisa em si, nós não somos capazes de o fazer, mas sobretudo nós não estamos autorizados a fazê-lo.» (…) «Espreitar por baixo das saias da Realidade é uma obsessão de filósofo. A “Crítica” é uma terapia inventada pelo doutor Kant para refrear esse desejo de ver, já que não pode erradicá-lo.» Concluindo: «A sexualidade de Kant não está na sua vida, mas na sua obra.» Toda esta «meditação» é acompanhada por alusões eróticas, brejeiras ou pornográficas de gosto duvidoso, mas decerto basto recomendáveis para apaziguar persistentes inquietações gnosiológicas de intelectuais obcecados pelas agruras da andropausa.

Fechado o livrinho, abramos um dicionário e leiamos a definição da única palavra capaz de assentar como uma luva a Pagès-Botul: «Cabotino – Do francês Cabotin, que se julga ser o nome do célebre comediante ambulante do século XVII, simultaneamente empresário e charlatão.» E está tudo dito.

Jean-Baptiste Botul, «A Vida Sexual de Immanuel Kant», Cavalo de Ferro, 2004, 71 páginas