As elites e o Estado Novo (Joaquim Croca Caeiro)

Súbditos de Salazar

António Rego Chaves

Surpreendeu muitos, logo após o 25 de Abril, que houvesse afinal tantos milhões de antifascistas em Portugal. Com efeito, assistimos nos meses seguintes às mais despudoradas reviravoltas, tendo-se notado que muitos súbditos – não cidadãos – que jamais haviam condenado Salazar e Caetano e que «não se metiam em política» se perfilavam, em bicos dos pés, como impolutos democratas ou, até, abalizados e didácticos marxistas-leninistas.

Abordando o tema «O Papel das Elites Políticas e Sociais na Evolução do Estado Novo», Joaquim Croca Caeiro renuncia, logo à partida, a abordar a «vexata quaestio» do papel desempenhado pela grande maioria dos nossos compatriotas na manutenção do salazarismo-caetanismo. Na verdade, as «elites políticas e sociais» constituíram uma ínfima parcela da população portuguesa que, por erro ou omissão, conferiu o seu implícito aval ao envergonhado fascismo corporizado pelo ditador de Santa Comba Dão.

Fernando Rosas pôs um dedo na ferida ao aludir, numa lúcida e certeira prosa, e sem rodeios, à «vasta retaguarda social e mental desse país de camponeses, artesãos, comerciantes, pequenos funcionários, o viveiro natural de cultura de resignação e obediência que impregnava a mentalidade geral e o ‘ser social’ português, a grande âncora invisível e quase sempre silenciosa da estabilidade e da durabilidade do regime». Acentuava também o historiador que a referida retaguarda social e mental «tendia a comportar-se, em situação normal, como uma espécie de base económica e social dos sectores mais conservadores das classes dirigentes, com cujos interesses se articulava o seu precário modo de subsistência».

Quanto ao operariado industrial e aos assalariados sem terra dos «campos do Sul», a questão era complexa. Mas, de uma forma geral, e ainda de acordo com Fernando Rosas, teriam sido «o operariado fabril da região de Lisboa, da margem norte e da margem sul do Tejo e os assalariados rurais alentejanos, do Baixo Ribatejo e da ‘região saloia’, a protagonizar, com intermitências mais ou menos prolongadas, o essencial dos confrontos sociais a partir de 1942, data do recomeço da agitação operária».

Neste contexto se deverá entender o ensaio de Joaquim Croca Caeiro sobre o papel desempenhado pelas mencionadas elites, distinguindo as «forças de continuidade e persistência» das «forças de insurgência e de mudança» que se manifestaram durante o regime derrubado em 1974. Entre as primeiras, dando a sua prestimosa contribuição para a estabilidade do salazarismo-caetanismo, assumem especial relevo as corporações, as Forças Armadas, os grupos económicos e a Igreja Católica. Quanto às segundas, há que mencionar sobretudo a oposição política e social, bem como a dissidência (tardia) no interior das hierarquias da Igreja Católica e das Forças Armadas.

A verdade é que, se o «golpe» levado a cabo em 28 de Maio de 1926 se deveu à iniciativa de parte das Forças Armadas – o mesmo sucedendo, aliás, com o «golpe» do 25 de Abril – a Igreja, eloquentemente representada por devotos do Centro Católico como Gonçalves Cerejeira ou Oliveira Salazar, foi bem lesta ao apoiar com todas as suas forças «espirituais» as tropas de Gomes da Costa (como, antes, não hesitara em recomendar o voto em Sidónio Pais). Na opinião de Manuel Braga da Cruz, «a Igreja contribuiu não só para promover a ascensão de Salazar e do Estado Novo como também para a sua consolidação e evolução, ao tornar-se num importante suporte institucional do regime, sobretudo nos primórdios, ao possibilitar ideologicamente a integração de massas no regime e ao constituir-se como o seu principal centro de extracção de elites.» De acordo com a eloquente síntese de Manuel de Lucena, «o salazarismo é inconcebível sem o apoio da Igreja».

Sem o apoio da Igreja, sim, mas não sem o do Centro Católico. Logo após a criação, em 1930, da chamada União Nacional, Salazar passou a considerar este partido, pelo qual fora eleito deputado em 1921, como «inconveniente para a marcha da Ditadura», «aconselhando-o» a que se transformasse em «organismo dedicado à acção social». O Centro acabaria por se dissolver em 1934, tendo muitos dos seus deputados e militantes ingressado na Acção Católica e, a convite do ditador, no partido único.

Salazar sabia, porém, que não lhe bastariam as elites das Forças Armadas e da Igreja Católica para se perpetuar no Poder. Procurou também fazer dos grupos económicos um sustentáculo do regime, apesar do conflito entre ruralistas e industrialistas. Quis beneficiar, de facto, todos, mas a verdade é que, do lado dos agricultores, foram os grandes latifundiários, no Sul e no Ribatejo, os favorecidos e, no Norte, os grandes agricultores que, apesar de não possuírem importantes extensões de terra, tinham capacidade de produzir desde o vinho ao milho, para além de uma cultura de subsistência. Quanto às virtudes do famoso «condicionamento industrial», basta recordar que constituiu a clara afirmação do privilégio dos que já se encontravam estabelecidos contra todos aqueles que lhes desejassem fazer concorrência.

No que se refere à oposição política, uma vez silenciadas as organizações provenientes da I República, o maior relevo deve-se à actividade do então clandestino Partido Comunista Português. E, se entre as elites os militares se destacam sobretudo os generais Botelho Moniz e Humberto Delgado, a hierarquia católica teve de se haver com os «casos» dos bispos da Beira, D. Sebastião de Resende, e do Porto, D. António Ferreira Gomes. Mas os quatro foram vozes isoladas, que não chegaram para alterar o perfil das instituições onde se encontravam integrados. Quanto às elites intelectuais católicas, nomes como os de Bénard da Costa ou Alçada Baptista, a par de muitos outros, não bastam para nos fazer esquecer a global cumplicidade dos mais esclarecidos com o salazarismo, sobretudo até aos anos sessenta.

Joaquim Croca Caeiro, «O Papel da Elites Políticas e Sociais na Evolução do Estado Novo», Universidade Lusíada, 2009, 226 páginas