Um cadáver político (Guilherme II)

António Rego Chaves

Primeira surpresa deste livro: é escrito por um diplomata alemão e utiliza uma bibliografia quase exclusivamente alemã. Segunda surpresa: nele, Guilherme II, que lhe dá o título, pouco importa. Terceira surpresa: merece, mesmo, ser lido. Porquê?

Primeiro porque o autor nos explica como se chegou à unificação do país. Depois, porque nos expõe, com grande clareza, as causas da «Grande Guerra». Enfim, porque nos informa acerca de quem, em 1914, estaria e não estaria interessado na paz.

Conhecemos a «verdade» dos vencedores: «bons» para um lado, «maus», ou seja, alemães, «hunos», para o outro. Demasiado linear para ser credível. Vamos por partes. Como interroga Jaime Gama no prefácio, «seria, em termos de opção pessoal e política, Guilherme II mais imperialista e belicista do que os seus contemporâneos Nicolau II da Rússia, Francisco José do Império Austro-Húngaro, Vítor Emanuel II da Itália, Edward Grey da Grã-Bretanha ou Raymond Poincaré da França? » A resposta quase está contida na pergunta: «não», cinco vezes «não». Mas por que motivos? Porque, responde o autor, «as sociedades do fim do século XIX, devido ao impacte sem precedentes da Revolução Industrial, eram sociedades em grande ebulição, onde cada um tinha de redefinir e lutar pela sua posição, o que causou enormes conflitos sociais e políticos». Tais conflitos ocorriam entre trabalhadores e burguesia, entre a burguesia e a aristocracia, entre as maiorias e as minorias étnicas, entre protestantismo, ortodoxia e catolicismo. Existiria melhor forma de unificar um Estado do que promover um conflito externo capaz de canalizar todas as energias agressivas para o exterior? «A Áustria-Hungria esperava poder unir um país dividido em muitas etnias, enquanto na Rússia, depois da Revolução de 1905, a aristocracia esperava poder reafirmar a sua preponderância. Na Alemanha, na França e na Grã-Bretanha, esperava-se poder anular as clivagens sociais entre trabalhadores e classes mais abastadas.» Que «infalível» panaceia para a luta de classes, a «Grande Guerra»…

«Otto von Bismarck criou o mais moderno sistema de protecção social na Europa da altura, a protecção do Estado conta a invalidez, a doença, e a velhice». Vale dizer, «inventou» o Estado-Providência. Também «recusou qualquer expansionismo e conduziu, desde a fundação do Reich, em 1871, uma política decididamente orientada para a paz». E «suspendeu as ambições coloniais da Alemanha». O mais elementar bom-senso recomendaria aos seus sucessores que não pusessem em causa, antes consolidassem, os «milagrosos» resultados adquiridos pelo «Chanceler de Ferro», mas não foi isso que sucedeu. Não apenas por culpa própria: talvez, também, e sobretudo porque, para a Grã-Bretanha, era intolerável o facto de a próspera Alemanha passar a constituir «uma ameaça ao seu poder dominante, que havia que enfraquecer como fora enfraquecida a França de Napoleão e de Luís XIV, ou ainda a poderosa Espanha do tempo de Filipe II». Aliás, quando terminou a governação de Bismarck, «a Alemanha encontrava-se numa situação bastante confortável. Com excepção da França, estava ligada por alianças directas a todas as grandes potências europeias: à Áustria– Hungria (Dupla Aliança de 1879), à Rússia (Tratado de Resseguro de 1887), à Itália (Tripla Aliança, 1882) e, embora indirectamente, também à Grã-Bretanha, por meio do Acordo do Mediterrâneo, celebrado entre a Áustria, a Itália e o Reino Unido em 1887.

Stefan Zweig diria, caracterizando a época que na Alemanha precedeu a I Guerra Mundial: «Ninguém acreditava em guerras, revoluções ou golpes de Estado. Todas as situações extremas, a violência, pareciam algo impossível nessa era da razão.»

Bismarck não teria sucessores à altura. Max Weber diagnosticou com brilho a situação herdada por Guilherme II: «Tínhamos no berço a pior maldição que a história podia legar a uma geração: o duro destino de sermos epígonos políticos.» Se a tragédia ocorreu, foi em parte porque a sua geração não soube preservar o legado de Bismarck. O Kaiser, num primeiro momento, cometeu o erro de querer, ele próprio, governar, procurando ampliar o «lugar ao sol» da Alemanha entre as potências coloniais. É então que dá o seu apoio ao militarismo do almirante Tirpitz, convencido de que poderia enfrentar com êxito a Grã-Bretanha quando o Reich tivesse à sua disposição uma Marinha de Guerra digna da segunda maior potência europeia. Guilherme II entusiasmava-se: «Poder imperial significa poder marítimo e o poder imperial e o poder marítimo dependem um do outro de tal maneira que não podem existir um sem o outro.» Os britânicos entenderam a «provocação» e, em 1894, a França concluía uma aliança militar com a Rússia – precisamente o que Bismarck mais temia que viesse algum dia a suceder. A partir daí, os dados estavam lançados contra a Alemanha e a Áustria-Hungria. Iniciava-se a contagem decrescente para a I Guerra Mundial. Se alguma dúvida restasse em 1904, a «Entente Cordiale», celebrada entre as duas grandes rivais coloniais, França e Grã-Bretanha, pulverizou-a de uma vez por todas.

Facto histórico da maior importância: na Alemanha, «o mais tardar depois da mobilização da Rússia, foram os militares quem assumiu, de facto, o Poder. O próprio chanceler Bethmann Hollweg, apesar das tentativas que fez para encontrar uma solução negociada, «permitiu que os chefes militares o relegassem para segundo plano, para a posição de assistente do Estado-Maior». Se o Kaiser não era um grande estadista, o seu chanceler era-o ainda menos. Conclui Matthias Fischer: «Guilherme II não queria a guerra, queria sinceramente ficar na história como o «Friedenkaiser», o Imperador da Paz. No entanto, o que aconteceu foi precisamente o contrário. O grande interesse que têm, para a história, a vida e a personalidade do Kaiser Guilherme II é precisamente a análise desta guerra mortífera que ele, como outros, não conseguiu evitar.» Não foi em 1941, quando morreu, que Guilherme II desapareceu da história, mas em 1914, quando os militares alemães o transformaram num cadáver político…

Matthias Fischer, «O Último Imperador da Alemanha», Principia, 2007, 295 páginas