António Rego Chaves/O livro, a Seita, o Reino

Procurava o último livro sobre a Seita. Queria cimentar a ideia de que não tinha cometido a injustiça de confundir Pio XII com João XXIII, o pré-conciliar com o pós-conciliar, as «conversões» forçadas de judeus com a prática da tolerância. Consultado o computador, lá chegou a informação de que já não estava disponível.

Quem compra? Gente como eu, que nada tem a ver com a Seita, gente do Seita, que nada tem a ver comigo? Por que motivo é que certos livros que contêm fundadas críticas à Seita desaparecem tão rapidamente do mercado? Curiosidade generalizada? Avidez dos críticos da Seita? Excesso de zelo dos seus sectários, que os adquirem às dúzias, não os lendo nem deixando lê-los? Um verdadeiro mistério: quantos são os que querem saber, quantos são os que não querem que se saiba? Números, percentagens, estatísticas? Claro que não há, mas seria bom que viessem a lume: por cada dois livros «incómodos» que desaparecem das livrarias, os da Seita compram ambos, um, zero? A verdade é que ninguém se identifica como fanático da Seita ou como seu figadal inimigo. E, ao lusco-fusco das estantes, todos os gatos são pardos.

Evidente se tornara que a Seita «aprecia» mais João Paulo II do que João XXIII, Pio XII do que de Paulo VI, o Vaticano I do que o Vaticano II, a «restauração» do que o «aggiornamento». Ainda que mantendo para consumo externo a insustentável ficção de não ter havido qualquer quebra de continuidade entre o conservadorismo de Pacelli e a «revolução» de Roncalli, a Seita só merece uma mensagem: boas-noites ao vosso proselitismo, ao apregoado carácter científico da vossa teologia, ao vosso injustificável e arrogante «vaticanocentrismo».

Não falo de cor, já os vi de muito perto. Bastou-me escutar o indisfarçado desprezo com que eles se referem aos «calvinistas» ou a alguns dos mais eminentes teólogos do século XX, bastou-me vê-los em competição desenfreada não apenas para serem os mais influentes nos seus locais de trabalho como no seu círculo de relações sociais, bastou-me ouvi-los proclamar as excelsas virtudes da docilidade e da obediência ao «senhor Papa» e aos «senhores padres», mandem eles o que mandarem e façam eles o que fizerem, para me ter sentido elefante em loja de louças: a milhas do seu «habitat» e com vontade de partir todas as chávenas de porcelana falsificada.

Os membros da Seita cultivam uma irreprimível ânsia de gerir, de comandar e de ocupar os lugares cimeiros da nossa sociedade, pretendendo assim cumprir um alto destino mundano divinamente traçado e morrer gratificados com a vida eterna. Desconhecem a dúvida, perfilam-se como casta privilegiada e, para usar a terminologia de Agostinho em «A Cidade de Deus», ampliam a cada passo uma grotesca caricatura da utópica «cidade terrena espiritual». Por isso é bom que se lhes diga: «No mundo que queremos não haverá detentores de verdades absolutas e ninguém “converterá” ninguém às suas crenças ou descrenças. As pessoas não terão medo da liberdade de pensar e de agir. Não existirão senhores nem escravos da “religião verdadeira”. Será um mundo que jamais pertencerá ao vosso reino.»

Esta crónica foi publicada na revista «Os Meus Livros» em Março de 2005