Um Freud «proibido»

António Rego Chaves

Em carta datada de 25 de Novembro de 1928, escrevia Sigmund Freud ao pastor protestante e psicanalista suíço Oskar Pfister, seu amigo: «Não sei se adivinhou os laços entre a ‘Análise Leiga’ e a ‘Ilusão’. Na primeira, quero proteger a análise contra os médicos, na outra contra os padres. Gostaria de a confiar a uma corporação que actualmente não existe, uma corporação laica de ministros das almas que não teriam necessidade de ser médicos nem teriam o direito de ser padres.»

Na verdade, em obra de 1926, «A Questão da Análise Leiga», o «pai da psicanálise» afirmara-se sem ambiguidades como um intransigente defensor da prática da «sua» ciência por não-médicos, e não apenas por quaisquer médicos ou psiquiatras. Durou longos anos a batalha pela defesa da especificidade do freudismo em relação às pretensões corporativas dos que, sobretudo nos Estados Unidos, pretendiam transformar a psicanálise numa espécie de «criada» da medicina em geral ou da psiquiatria. Quanto à religião, o problema era outro, como se pode comprovar pela leitura de «O Futuro de uma Ilusão», livro publicado em 1927, quase imediatamente depois da «Análise Leiga» e pouco antes de «O Mal-Estar na Civilização» (1930).

«O Futuro de uma Ilusão» não surgia por acaso, nem continha reflexões que não fossem previsíveis no âmbito de antigas preocupações de Freud. Com efeito, já em 1907 escrevera o artigo «Actos Obsessivos na Prática Religiosa», onde comparara a religião com uma neurose obsessiva; por outro lado, as obras «Totem e Tabu» (1913) ou «Moisés e o Monoteísmo» (1939) evidenciaram que a cabal explicação dos fundamentos da religião era uma matéria da maior relevância para a psicanálise.

«Tratar a religião como um problema humano» foi desde sempre uma das grandes ambições científicas de Freud. Afirmara, na «Psicopatologia da Vida Quotidiana» (1901), que «a concepção mitológica do mundo que anima mesmo as mais modernas religiões não é senão psicologia projectada sobre o mundo exterior». Em 1927 vai ainda mais longe: «O homem crente e piedoso está eminentemente protegido contra certas afecções neuróticas: a adopção da neurose universal dispensa-o da tarefa de formar uma neurose pessoal.» Que não se procure nestas afirmações qualquer laivo de cinismo: o seu autor acreditava que as crenças religiosas constituem a realização dos mais antigos anseios dos seres humanos – mas parecia seguro que elas nada mais são do que «ilusão». «Ilusão» não significa erro, nem ideia delirante, pois estes encontram-se em contradição com a realidade dos factos. A ilusão não é necessariamente falsa, mas é apenas produto dos desejos dos indivíduos: dai que todas as doutrinas religiosas sejam ilusões, tornando-se «tão impossível refutá-las quanto prová-las».

Legítimo descendente dos pensadores das Luzes do século XVIII – e até do Feuerbach de «A Essência do Cristianismo» –, o que Sigmund Freud pretende investigar é a psicogénese das religiões. Já a 2 de Janeiro de 1910 escrevia a Carl Gustav Jung, então ainda seu amigo e discípulo, que a razão última da necessidade de religião seria o doloroso «desamparo infantil» vivido pelos humanos. E concluía que, a partir do momento em que estes não conseguiram conceber o seu mundo sem pais, inventaram «um Deus justo e uma natureza boa». As doutrinas religiosas permitiriam, pois, que o crente tomasse os seus desejos por realidades, substituindo a neurose pela ideia delirante. A morte deixaria de ser «um regresso ao inanimado orgânico», para se transformar «num novo modo de existência». Como salienta Jacques André no esclarecedor prefácio inserido nesta edição: «Neurótica, e filha do complexo paternal, quando ordena: ‘Não matarás’», a religião é psicótica, e filha das primeiras angústias infantis, quando garante a vida eterna. Muito pouca coisa, neste último caso, distingue a ilusão da alucinação: a religiosidade tende a restaurar, sob uma forma alucinatória, o narcisismo ilimitado correlativo do sentimento de impotência da criança. A análise, em ‘O Mal-Estar na Civilização’, do ‘sentimento oceânico’ – origem da necessidade religiosa, segundo Romain Rolland –, e a designação da religião como ‘delírio de massas’ virão reforçar esta nova perspectiva». (…) «Na sua vertente neurótica, a religião surge como irmã do recalcamento: ‘Retardar o desenvolvimento sexual e apressar a influência religiosa’ não serão os dois pontos principais da pedagogia de hoje?’ [1927]. Formação religiosa e neurose de constrangimento têm ambas como base a renúncia a certos impulsos pulsionais. A primeira convida a sacrificar o nosso prazer pulsional à divindade, a segunda ao superego, herdeiro da autoridade paterna.»

Como também releva o prefaciador, o pensamento de Freud não se encontra muito longe da concepção de Marx, para quem «a religião é o ópio do povo», pelo menos quando afirma que «a acção das consolações religiosas pode ser assimilada à de um narcótico». Sendo o dogma uma característica essencial da religião, o crente interioriza que «é proibido duvidar». Ora, o que Freud aqui opõe a tal «proibição de pensar» não é obviamente um novo dogma, desta vez de carácter cientificista, mas alguns pontos de vista que «não fazem parte integrante do sistema psicanalítico» e diz derivarem da sua «atitude pessoal». Não deixará, porém, de acrescentar, alguns anos passados: «A nossa melhor esperança para o futuro é que o intelecto – o espírito científico, a razão – alcance com o tempo a ditadura na vida psíquica.» No entanto, ao contrário do que se passa com o dogma religioso, a lei científica está longe de constituir um delírio, dado que ela se encontra sempre sujeita a eventuais desmentidos impostos pela experiência. Assim, «Deus» seria apenas a Razão…humana.

Uma nota final para estranhar que esta obra não esteja disponível em português de Portugal. Tantos anos passados sobre o aparente termo da censura eclesiástica (e política) que sufocou o País durante séculos, quem sentirá ainda medo de editar um clássico tão digno de reflexão e debate como «O Futuro de uma Ilusão»?

Sigmund Freud, «L’Avenir d’une illusion», PUF, 2004, 63 páginas