Maurras e a «divina surpresa» («Mes idées politiques»)

António Rego Chaves

Considerava Charles Maurras (1868-1952), um dos mentores do jovem Salazar, que o seu «discípulo» português «ofereceu à autoridade o mais humano dos rostos». Embora decerto soubesse mais do nosso «país legal» do que do nosso «país real», revia-se no ditador português, dado que, como ele, substituíra a generosa divisa «Liberdade, Igualdade, Fraternidade» pela mais prosaica ambição de «Trabalho, Família, Pátria». O ideólogo francês veria no Pétain de Vichy, também ele um admirador de Salazar, a «divina surpresa» oferecida pelos germanos ao conservadorismo… germanófobo.

Condenado a prisão perpétua em 1945 por «entendimento com uma potência inimiga», Charles Maurras tinha, desde 1900, definido e feito cristalizar as suas concepções políticas. Ao sintetizá-las nesta obra, em 1937, com a Frente Popular no Poder, a «Action Française», que fundara e corporizava, encontrava-se já longe do apogeu, depois de Pio XI a ter «enjeitado», em 1926. Impedido de se servir da Igreja Romana, ele, um agnóstico, para impor objectivos antidemocráticos, corporativistas e monárquicos, deixava de se poder arvorar em arauto da civilização latina e católica no seu choque com a germânica e protestante. Só em 1939 Pio XII «reabilitaria» a «Action Française», reabrindo assim a via oportunista da instrumentalização do catolicismo pelo chamado «nacionalismo integral».

O neotomista Jacques Maritain, desde a condenação de Pio XI ex- «Action Française», respondeu, sabe-se, com o «primado do espiritual» ao célebre «politique d’abord» de Charles Maurras. Evitemos confundir conceitos: como diz o autor, «politique d’abord» significa apenas que «a política é a primeira na ordem do tempo, mas de forma alguma na ordem da dignidade». Ou seja, «o meio de acção precederá o centro de destino». Contudo, se a política não é um fim em si mesma, mas um meio usado para atingir certos fins, quais serão então os fins da política? Resposta: «Sendo a economia a ciência e a arte de alimentar os cidadãos e as famílias, de os convidar para o banquete de uma vida próspera e fecunda, é um dos fins necessários de toda a política. É mais importante do que a política. Deve portanto vir depois da política, tal como os fins vêm depois dos meios».

«É provável, escrevera Ernest Renan em 1871, que o século XIX (…) seja considerado na história da França como a expiação da Revolução.» Por isso o grande pessimista de «A Reforma Intelectual e Moral» da França atacara o individualismo e o direito natural, o princípio da soberania popular, o sufrágio universal; também por isso defendera a hierarquia, a monarquia, uma aristocracia do pensamento. Depois da derrota de Sedan, frente aos prussianos, e da Comuna de Paris, Renan, antes liberal e republicano, orientara-se para o absolutismo. Maurras segue-lhe gostosamente os passos, erigindo como inimigos a democracia, o liberalismo, o socialismo.

Na pertinaz guerrilha verbal e política praticada pelo ensaísta de «Inquérito sobre a Monarquia» assumirão especial relevo «os quatro Estados confederados» – judeu, protestante, maçon e «meteco», este último grupo «instalado em França no lugar dos franceses». Seriam «quatro oligarquias, de natureza profundamente internacional, todo-poderosas e reinantes». Quanto aos protestantes, sublinhe-se, Maurras concede que o patriotismo e o nacionalismo de alguns não podem ser postos em causa, mas sustenta também que «os mais ‘avançados’ dentre eles se deixaram desnacionalizar», aludindo assim à criação da «escola primária anárquica», isto é, laica, pois considera o catolicismo como «a religião nacional da França». Para ele, aliás, a crise vivida no seu país desde os inícios do século XX é inseparável da continuidade entre a Reforma, J.-J.Rousseau e a Revolução de 1789.

«Será tempo, um destes dias, de mostrar quanto é em função do programa anti-semita que todo o resto do programa nacionalista e monárquico poderá passar da concepção à execução», escrevera quando ainda estava bem vivo na memória de todos o «caso Dreyfus». Muitos e muitos papistas franceses gritavam então, aliás com a cumplicidade de grande parte da hierarquia eclesiástica: «Viva o rei! Viva o imperador! Morte aos judeus!». A santa aliança entre agnósticos e integristas católicos contra os não-franceses e os judeus conduzirá em linha recta a várias leis do regime de Vichy: proibição do exercício de funções públicas e de profissões jurídicas aos indivíduos nascidos de pai estrangeiro; Estatuto dos Judeus, vedando a maior parte dos empregos públicos e determinados empregos privados aos judeus; um decreto permitindo internar «judeus estrangeiros» em campos especiais.

Faz notar Michel Winock: «Nas suas ilusões isolacionistas, o regime petainista e a ‘Action Française’ foram conduzidos a julgar a Resistência e a França Livre como inimigos. Maurras, que não deixou de aguilhoar a política antijudaica de Vichy, assumiu também a responsabilidade dos apelos ao assassínio contra os gaullistas» – a quem chamava ‘terroristas’.»

A obsessão anti-judaica de Maurras não conheceu fronteiras: menos de dois meses antes da sua morte, ainda vociferava: «A bárbara ocupação de 1940 nunca se teria verificado sem os judeus de 1939, sem a sua guerra imunda, a guerra que tinham empreendido, a guerra que tinham declarado; os ocupantes tinham sido introduzidos por eles. Foram os judeus quem nos lançou na catástrofe.» Para além do delírio do desesperado vencido, fica-nos a ideia segundo a qual o remorso nunca o poderia atingir, a ele que tão longamente chocara «o ovo da serpente» que aniquilara tantos dos seus compatriotas. Concluamos, ainda com o historiador Michel Winock: «Mais conservadora do que nacionalista, mais nacionalista do que monárquica, a ‘Action Française’ não pôde apesar de tudo resistir à prova dos factos, resvalando da ‘divina surpresa’ para a ‘vingança de Dreyfus’.» Era tarde: os mortos não se vingam – mas talvez fiquem sobreviventes para os honrar.

Charles Maurras, «Mes idées politiques», Arthème Fayard, 1937, XCI +295 páginas