Cristianismo e Igreja Romana (Antero, Oliveira Martins e Júlio de Vilhena)

António Rego Chaves

Nesse livro extraordinário que é a «Gramática das Civilizações», escreveu Fernand Braudel: «O cristianismo ocidental foi e continua a ser a componente fundamental do pensamento europeu, até do pensamento racionalista que, contra ele e a partir dele, se constituiu. De uma ponta à outra da história do Ocidente, permanece no cerne de uma civilização a que dá vida, mesmo quando se deixa arrastar ou deformar por ela, e que engloba, mesmo quando se esforça por lhe escapar. Na verdade, pensar contra alguém é permanecer na sua órbita. Quando ateu, um europeu continua prisioneiro de uma ética, de comportamentos psíquicos poderosamente enraizados numa tradição cristã.»

Não foi a estas conclusões que Antero de Quental, Oliveira Martins e Júlio de Vilhena chegaram, em 1873, atingido que estava há muito o tempo de fazer um sereno balanço dos dez séculos de Idade Média. «Santo Antero» limitou-se a falar uma vez – e para contrariar a tese da «interrupção de desenvolvimento» que Oliveira Martins defendera na «Teoria do Socialismo». Eis as suas palavras: «Não se deu na Idade Média uma ‘interrupção de desenvolvimento’, mas sim uma daquelas ‘crises’ orgânicas que são próprias e espontâneas na evolução dentro do mundo dos organismos». (…) «O reino social e político, depois de rápido e ininterrupto progresso realizado desde Homero até aos Antoninos, teve de estacionar, esperando que o reino moral, através das várias espécies de Cristianismo e da Filosofia Escolástica, chegasse a um grau de desenvolvimento paralelo ao seu, que lhe tornasse possível continuar a progredir.»

Oliveira Martins rejeitou estas conclusões do poeta e argumentou: «Não descubro no Cristianismo originalidade transcendente, pois me parece que a religião conhecida por tal nome é um composto duplo da transcendência antiga de Sócrates até aos neoplatónicos de Alexandria e da teurgia oriental. E argumentava: «Para lhe provar que a Idade Média é um verdadeiro retrocesso, bastam-me poucos exemplos: a reconstituição moral da escravidão pelo pecado, a divinização do César, a substituição das leis bárbaras ao direito romano, a instituição do feudalismo.»

Ficaria tudo por aqui? Não. Antero abandona, teria já dito o essencial do que tinha a dizer ou não estaria interessado em continuar a polémica com o amigo e correligionário. Surge então o jurista Júlio de Vilhena, com o seu livro «As Raças Históricas na Península Ibérica», no qual ataca os dois socialistas seus adversários ideológicos, sobretudo Oliveira Martins, proclamando: «Toda a revolução da Idade Média foi operada pelo Cristianismo; o elemento bárbaro teve um papel completamente passivo, e o elemento romano auxiliou a Igreja na sua grande obra de transformação social. A individualidade não veio para a civilização moderna por intermédio da raça germânica, veio por intermédio do Cristianismo.» Tornava-se claro o que passava a estar em jogo – a «confusão» entre Cristianismo e Igreja Católica.

Júlio de Vilhena atribuirá todas as virtudes ao Cristianismo: «Fundou a moral doméstica, emancipando a mulher, a independência individual, alforriando o escravo, a harmonia e o progresso das sociedades, proclamando a fraternidade universal. Toda igualitária, toda niveladora, toda democrática, toda republicana, a religião cristã evidencia uma nova fase de especulação metafísica, muito superior às escolas gregas, e uma fase de moral prática, muito mais elevada do que os sistemas da Antiguidade.» (…) «Nas reformas carlovingianas, nas cruzadas, nas comunas, no feudalismo, em tudo, vê-se crescer, de dia para dia, o grande embrião da liberdade moderna.»

Oliveira Martins recorda o indiscutível, que não foi o Cristianismo que influenciou a Antiguidade, mas a Antiguidade que influenciou o Cristianismo: «Cícero, Séneca, Florentino, Ulpiano, Caio, a dizerem que o mundo é a pátria comum dos homens, que a humanidade é uma família, que todos os homens são livres e iguais, que a escravidão é contra a natureza. Tudo isso será cristianismo?» (…) «Será afirmar a personalidade e liberdade humanas, será igualitária, niveladora e republicanamente que aparece a doutrina do pecado original, da perversidade natural do homem, do abandono das coisas terrenas, do ascetismo, do misticismo do suicídio que Tertuliano prega? Será republicanamente que S. Paulo diz: ‘quem resiste, resiste a Deus’, e S. Pedro acrescenta: ‘obedece ainda aos maus príncipes’?»

Júlio de Vilhena não desarma: «À Idade Média pertence a constituição do direito romano em ciência e, deste modo, o movimento inicial da jurisprudência moderna. As descobertas da química actual foram precedidas pelos sonhos dos alquimistas; a astronomia pelas visões proféticas da astrologia. A Idade Média teve uma arquitectura sua, uma literatura sua e uma filosofia sua. Sem a Escolástica não existiria Descartes, não seria procriada a metafísica alemã. As polémicas da Escolástica prepararam o (‘Discurso do) Método’, que imprimiu o carácter individualista à filosofia do século XVII. O ‘Método’ preparou Kant, Schelling e Hegel; nos fastos do espírito humano, a Idade Média não é nem pode ser um retrocesso.»

Oliveira Martins não recua e visa finalmente a política da Igreja: «S. Ex.ª teima em achá-la útil. Eu tenho o mau gosto de a achar perversa… (…) S. Ex.ª acha-a útil, porque foi necessária. (…) Nesses termos, também eu a acho útil. Tão útil como, por exemplo… a varíola, para os médicos que impugnam a vacina. Se, porém, sujeitarmos o princípio que leva a Igreja a influir na sociedade civil a uma análise filosófica, encontro-o perverso, porque é o da subordinação da razão à revelação, conforme o pregam Santo Agostinho, S. Tomás, (Juan de) Mariana, Bossuet e os ultamontanos dos nossos dias.» E finaliza invocando esta sentença lapidar de Alexandre Herculano: «Se a influência da doutrina cristã foi boa porque o Evangelho diz que o meu reino não é deste mundo, a influência da Igreja que sempre disse o contrário tinha por força de ser má.» «Caso» arrumado para o Portugal pensante de 1873...

Antero de Quental, Oliveira Martins e Júlio de Vilhena, «A Idade Média na História da Civilização», Esfera do Caos, 2006, 125 páginas