Edificação de um Estado (D. Afonso Henriques)

António Rego Chaves

Afonso Henriques e José Mattoso, o autor desta biografia do primeiro rei de Portugal, não necessitam de apresentação. Porém, basta ler a introdução da nova obra do reputado medievalista para ficarmos seguros de que pouco sabemos acerca do filho de D. Henrique e D.ª Teresa. Escreve José Mattoso: «Não é preciso ser historiador profissional para perceber que não se pode traçar a biografia de uma personagem medieval sem uma grande dose de imaginação. Os dados documentais são quase sempre escassos e fragmentários. As informações fornecidas pelos textos narrativos encontram-se em autores que não se interessavam pelo comportamento pessoal dos seus protagonistas, mas pelo que eles representavam como símbolos de virtudes ou de vícios, como actores exemplares na luta entre o bem e o mal, como colaboradores de Deus na obra de salvação da humanidade, ou como seduzidos pelo demónio na sua cedência ao pecado.» (…) «Tentei sempre acentuar o carácter hipotético das interpretações, de forma a que os leitores pudessem aferir a distância que separa a biografia apresentada dos indícios documentais em que ela se baseia. O resultado parece-se um pouco com a reconstrução de uma casa arruinada por um ou vários terramotos, e que se tenta refazer, sem ter a certeza de reencontrar a traça primitiva.»

As dúvidas começam logo após o nascimento, em 1109, do futuro monarca: foi ele entregue a Egas Moniz de Ribadouro, como sustenta uma muito antiga tradição, ou a Ermígio Moniz de Ribadouro, seu irmão? Certo é que os pretensos aios pertenciam a uma poderosa família de Entre Douro e Minho, segundo Oliveira Marques uma das trinta que originaram a nobreza de Portugal. Quanto à infância e adolescência, parece incontroverso que decorreram num clima de intensas lutas, intrigas e contradições, até que, em 1125 ou 1126, o jovem se arma cavaleiro, presumivelmente em Zamora, que então fazia parte do senhorio de D.ª Teresa. Em 1127, com o cerco de Guimarães, afirma José Mattoso, «a actuação de Afonso Henriques projectou-o para o centro dos acontecimentos mais importantes do ponto de vista político. De facto, o seu protagonismo colocava-o a par da rainha sua mãe e do conde Fernão Peres. Ora a situação de conflito entre o conde e a aristocracia nortenha obrigava-o a escolher um dos campos em confronto. A sua ligação à aristocracia, representada pelo vínculo pessoal com o «Aio» que o tinha criado, fez prevalecer a sua opção pelo conjunto dos nobres. (…) Não queremos com isto dizer que a lenda de Egas Moniz fosse verdadeira. Este pormenor, no entanto, é secundário, quando comparado com o facto de ter preservado uma tradição que acentua a sua íntima relação com o meio aristocrático portucalense, que os futuros cortesãos, como é natural, não deixaram de cultivar para mostrarem quanto os reis de Portugal deviam à classe nobre.»

Arredados D. Teresa e os Travas, rejeitado o indesejado vínculo com a Galiza na Batalha de São Mamede (1128), estava aberto o caminho para a independência do Condado Portucalense, mas impunha-se que o novo detentor do Poder se libertasse da tutela da nobreza senhorial nortenha, embora sem a hostilizar. Foi o que fez, com indiscutível bom-senso, primeiro mudando-se para Coimbra («a cidade mais importante do condado pelo número dos seus habitantes, pela sua importância económica, social e militar e pelo seu dinamismo cultural»), depois protegendo os cavaleiros vilãos e os concelhos do Centro e do Sul e favorecendo ordens militares e religiosas, ao mesmo tempo que incrementava as investidas contra os muçulmanos (Batalha de Ourique, conquistas de Santarém, Lisboa, Sintra, Almada, Palmela, Alcácer do Sal). O seu imprescindível conselheiro para questões tão cruciais como as relativas à política interna e externa terá sido D. João Peculiar, um dos fundadores de Santa Cruz de Coimbra, depois bispo do Porto e arcebispo de Braga.

Há muito de trágico na vida d’ «O Conquistador», após o «desastre de Badajoz» (1169): o destino reservara-lhe uma «longa e humilhante imobilização», a ele que cavalgara sem descanso à frente dos seus exércitos, que fora herói de tantas e tantas batalhas, que protegera, durante decénios, todo o território do país que gerara e, se bem que apenas seis anos antes de morrer, fizera aceitar por Roma como o seu reino. De facto, o papa Alexandre III reconheceu finalmente a D. Afonso Henriques, em 1179, pela bula «Manifestis probatum est», o título de rei e anunciou que o tomava a ele e seus herdeiros sob a protecção da Santa Sé, considerando Portugal independente como pertencente a São Pedro. Terminava assim um «calvário» de trinta e seis anos de complexas negociações, precisamente três meses depois de o rei ter ditado o seu primeiro testamento. José Mattoso desvenda o mistério: «Que se saiba, ninguém se lembrou de relacionar a bula com o testamento do rei. Mas a relação é, provavelmente, muito próxima. O testamento mandava distribuir consideráveis somas de dinheiro em favor da Igreja. Nesse mesmo contexto, o rei deve ter também resolvido oferecer uma grande soma ao papa e aumentar o montante do censo, em parte como obra pia, em parte para ver se resolvia de vez um problema que se arrastava há demasiado tempo.» (…) «Os favores papais continuavam e continuariam a ser pagos.»

Fazendo o balanço do reinado, comentou Veríssimo Serrão, apoiado em Alexandre Herculano: «Como parece inexacto o juízo de Oliveira Martins ao ver em D. Afonso Henriques ‘um bandido à imitação de Pelaio’, um ‘fraco general apesar de temerário’, um chefe sem qualidades e desprovido de escrúpulos: ‘ubíquo militarmente, era nos negócios um Proteu’.» (…) «Bastaria verificar o mapa português em 1185, para reconhecer o esforço que o infante tornado rei soube despender no inicial travejamento da Pátria. A figura de D. Afonso Henriques tomou assim uma estatura colossal perante a história, como edificador de um Estado que fez da Reconquista Cristã a sua primeira vocação em busca de mais ampla autonomia política.»

Salta à vista que a História está bem longe de ser uma ciência exacta…

José Mattoso, «D. Afonso Henriques», Círculo de Leitores, 2006, 318 páginas