Pasolini, intelectual e cidadão

António Rego Chaves

A Justiça italiana reabriu, em Maio do ano passado, o inquérito às circunstâncias da morte do cineasta, poeta, romancista, ensaísta e polemista Pier Paolo Pasolini, em Novembro de 1975, junto à praia de Ostia, nos arredores de Roma. A iniciativa verificou-se apenas dois dias depois de o pretenso culpado – Pino Pelosi, que na altura do crime era um prostituto de 17 anos e seria condenado a nove anos de prisão, mas viria a ser libertado em 1983 – ter, em entrevista à RAI, declarado estar inocente e que o assassínio havia sido cometido por «três outras pessoas».

Pino Pelosi garantira na época do crime ter actuado só, horas depois de abordado por Pasolini em Roma na estação ferroviária de Termini e de ser conduzido pelo cineasta, no Alfa Romeo deste, para as imediações de Ostia. Em 2005 a versão foi outra: a vítima teria sido barbaramente agredida por três desconhecidos, no mesmo local, entre gritos como «porco comunista» e «maricão». A falsidade do primeiro relato dos factos pelo pretenso assassino ter-se-ia ficado a dever às ameaças que recebera por parte dos três referidos indivíduos, pondo em risco não só a sua vida como a de seus pais.

Incontroverso é que, pouco antes da tragédia, Pasolini recebera diversas vezes ameaças de morte provenientes da extrema-direita. Por outro lado, numerosos intelectuais, sob a égide de Alberto Moravia, há muito haviam relacionado o assassínio com motivos políticos, nomeadamente devido ao filme «Salò ou os 120 Dias de Sodoma», obra na qual o realizador retratara de forma implacável os últimos dias do fascismo italiano.

A tese do crime político ganhou assim renovada consistência, contra todos os que pretendiam fazer passar o acontecido por um insignificante «fait-divers» de violência ocorrido entre um cliente homossexual e um jovem delinquente, recusando encarar «o intelectual mais incómodo da Itália de 1975», aliás católico e marxista, como vítima mortal da intolerância de quaisquer inimigos ideológicos. Neste contexto, soa como uma manifestação de repugnante cinismo a célebre frase proferida pelo aparente porta-voz de uma certa burguesia bem-pensante, o líder cristão-democrata Giulio Andreotti, que na época considerou ter Pier Paolo Pasolini «procurado o sucedido».

Como salientou René de Ceccatty, Pasolini viveu um doloroso quotidiano desde que, em 1949, sendo professor, foi acusado de «desvio de menores» e «indignidade moral» e, em consequência, expulso do Ensino e do Partido Comunista Italiano. Viria muito depois a ser julgado por «conteúdo pornográfico», «ofensas à religião do Estado» e «atentado aos bons costumes» de grande parte dos seus filmes. Escreve aquele seu biógrafo: «Ele exprimia os seus temores acerca do futuro político do seu país: ascensão de uma classe de grandes industriais votados a impor-se na governação, ressurgência de movimentos fascistas e exclusão sistemática dessa categoria de intelectuais-testemunhas de que fazia parte e que se tornava extremamente incómoda. Paralelamente, utilizava uma linguagem sexual provocante, como metáfora do poder. Incestos, orgias, violações, descrições minuciosas de relações sexuais.» Por outro lado, «em nenhum momento Pasolini se esquivou ao confronto: as suas tribunas nos jornais (de direita ou de esquerda) ou nas revistas intelectuais que dirigiu durante algum tempo (…) expunham-no, mas até os seus poemas, muitas vezes escritos em forma de epigrama, eram igualmente lidos como intervenções na vida social.»

Ao editar em língua portuguesa alguns «Escritos Corsários» e «Cartas Luteranas», a Assírio & Alvim confiou a selecção dos textos ao critério de Francisco Roda, que decerto escolheu os que bem entendeu dever escolher. Fica-nos a perplexidade de ver preteridos documentos tão corajosos e virulentos como «Abjuração da Trilogia da Vida», «Pannella e a dissidência», «Seria necessário julgar os hierarcas da Democracia Cristã», «O Processo», «Intervenção no Congresso do Partido Radical», etc., etc. etc., (cerca de dúzia e meia), incluídos na recolha das «Éditions du Seuil» dada à estampa em Janeiro do ano 2000 com base no original de 1976 da responsabilidade da Einaudi. Que poderemos agora reter na nossa língua deste homem que foi simultaneamente e ao longo de grande parte da sua vida fascinado por Antonio Gramsci e Paulo de Tarso, por Karl Marx e João XXIII, pela esquerda materialista e pela temática do sagrado? Decerto o «pequeno tratado pedagógico» que são as «Cartas Luteranas» e alguns «Escritos Corsários», o que não será despiciendo: a recusa do reinado da mercadoria, da uniformização, do hedonismo e do consumismo. Tudo talvez assimilado, passados mais de 30 anos, pela chamada «intelligentsia» europeia. Talvez assimilado mas apenas em teoria, que fique bem claro. Quanto à prática, virão a ser criadas condições para que ela ainda chegue a tempo de evitar o «genocídio cultural» dos nossos netos?

Destruídos irreversivelmente a cultura de um povo e os seus valores e modelos tradicionais, sem que uma nova cultura tenha vindo substituir as ideias de Deus, de família, de honra, de confiança, de amizade, de dignidade, como iniciar a gigantesca tarefa de preparar o futuro? Pier Paolo Pasolini respondeu, preto no branco: há que começar por julgar «essa máfia oligárquica que, proveniente do fundo da província mais inculta, governa a Itália há alguns decénios», os responsáveis pela degradação e pelo desfiguramento do povo italiano, os grandes responsáveis pelo catastrófico genocídio cultural provocado pela todo-poderosa sociedade de consumo, a Democracia Cristã, «um nada ideológico e mafioso (…) que nunca teve princípios», embora «os tenha identificado, brutalmente, com os princípios morais e religiosos da Igreja, graças à qual detinha o Poder.» Afirmações como estas parecem susceptíveis de despertar a cólera dos visados: Pier Paolo Pasolini bem poderia ter sido, nesse já longínquo 1975, «condenado» à pena capital e «executado» em Ostia devido à sua generosa temeridade de intelectual e cidadão.

Pier Paolo Pasolini, «Escritos Corsários e Cartas Luteranas», «Assírio & Alvim», 2006, 174 páginas