Oficial e cavalheiro (Mouzinho de Albuquerque)

António Rego Chaves

Lembra o historiador Rui Ramos que o suicídio de Mouzinho de Albuquerque em 1902 «foi imediatamente comparado pela imprensa» aos de Antero e Soares dos Reis «e a sua desgraça posta à altura da do Afonso de Albuquerque que julgara ser». E continua: «A 28 de Dezembro de 1935, o Estado Novo começou a comemorar o Dia de Mouzinho. No entanto, o mito de Mouzinho começara a ser fabricado trinta anos antes, pelos seus amigos e parentes. Em vida de Mouzinho já os amigos se haviam habituado, meio a brincar, a tratá-lo por ‘o nosso herói’. Afinal, ele parecia-lhes ‘o único homem de acção em Portugal’. Na ocasião do suicídio, Pedro Gaivão, cunhado de Mouzinho e futuro secretário de João Franco, anunciava a Luís de Magalhães que Mouzinho ‘regressara ao passado’ donde viera. A sua época não era aquela. O seu feitio ‘era antagónico do feitio moderno’. Em Moçambique, vivera ‘um sonho real do mundo antigo’. Ao regressar a Portugal, esse sonho findara. Por isso, ‘a ânsia de morrer tornara-se como um ideal para Mouzinho’.»

Mas que «sonho real do mundo antigo» vivera Mouzinho na longínqua colónia de Moçambique? Não certamente o de exercer as funções de governador-geral e, depois, de comissário régio. Desabafara, mesmo, na época: «Meteram-me a governador-geral. Estou desolado. Adeus mato, adeus correrias aos pretos. Agora é despachar papéis numa secretária. Paciência.» Ele que tanto desprezava os políticos, esses «acácios», ele que execrava «a canalha dos jornais», ele que ambicionava «aclimatar o cavalo-marinho em Portugal», tratando os portugueses como antes tratara os «pretos» moçambicanos, isto é, usando da força bruta sem pruridos humanistas, encontrava-se em 1899 limitado pelo rei D. Carlos ao papel de inconformado aio (espécie de «baby-sitter» e mentor oficial) do príncipe D. Luís Filipe, obcecado pela carreira das armas, tecendo esconsos projectos de golpes militares contra as «tricas eleitorais» e o parlamentarismo, incomodado pelas intrigas que o davam como amante da rainha Dona Amélia. O sonho de glória vivido em Moçambique no Natal de 1895, esse chamara-se Chaimite e tivera como corolário a captura e humilhação do imperador zulu vátua Gungunhana, que viria a ser exibido por Lisboa inteira qual assustado animal exótico ou inédito troféu de caça, para gáudio da populaça «patriótica». Diga-se de passagem, como sublinha Oliveira Marques, que Gungunhana «representara uma ameaça constante à soberania nacional. Dos colonos ingleses e sul-africanos, os vátuas recebiam auxílio militar, financeiro e técnico, com o fito de enfraquecer a autoridade portuguesa e de a substituir, num futuro mais ou menos próximo, pela britânica.»

Escreve Veríssimo Serrão: «Muitos viam em Mouzinho uma espécie de salvador, o D. Sebastião voltado do cativeiro para salvar a Pátria.» (…) «O indómito cavaleiro vivia amargurado na função palaciana, saudoso das plagas ardentes onde aprendera a servir a Pátria. A acreditar em Raul Brandão, que recebeu o informe de José Alpoim, as relações de Mouzinho com o monarca acabaram por se deteriorar, em virtude das censuras que o aio do príncipe não se coibia de fazer aos chefes políticos.» (…) «Teria ele alimentado o sonho de um ‘militarismo democrático’, como sugeriu Bernardino Machado? O certo é que o monarca não quis aproveitar-lhe os talentos, repudiando qualquer solução de tipo militar que os conselheiros houvessem proposto. Mouzinho viu-se assim reduzido ao papel de cortesão silenciado, o que era uma postura incompatível como o seu indómito carácter.» Fosse como fosse, perfilavam-se já no horizonte os sinistros vultos antidemocráticos de João Franco, Sidónio Pais e Salazar.

No seu panegírico, dedicado «aos militares que ofertaram a vida, derramaram sangue, enxugaram suor e verteram lágrimas para que Moçambique fosse como Mouzinho sonhava», o coronel António Pires Nunes, em linguagem que por vezes se diria desenterrada de recônditos arquivos do defunto Estado Novo (Marcelo Caetano ‘dixit’, em «Mouzinho, Capitão da Mocidade», que ele tinha a estatura de «um grande construtor imperial»), esforça-se por demonstrar a excelência das campanhas militares e da governação colonial do seu camarada de armas oitocentista, descrevendo com gostosa cópia de empáticos pormenores «a glorificação do herói» no regresso «à Metrópole» e a recepção de que foi alvo por D. Carlos no Arsenal da Marinha, «em tudo correspondente ao triunfo dos generais romanos vitoriosos que, depois dos seus feitos em campanha, regressavam a Roma, onde desfilavam perante o imperador».

Bem mais digna de interesse do que estas barrocas evocações castrenses é, sem dúvida, a singela transcrição pelo autor da seguinte deliciosa confissão expressa no diário íntimo de Dona Amélia acerca da sua relação com o garboso Mouzinho – e que só por si justifica a dezena e meia de euros que o livro nos custa: «Eu admirava esse oficial de cavalaria, que tinha sido governador de Moçambique e vencido os rebeldes do Gungunhana na batalha decisiva de Coolela.» (…) «Encontrávamo-nos muitas vezes no Paço e uma amizade confiante nasceu entre nós e tornou-se tão profunda que ficámos alvos da intriga da corte.» (…) «Fazíamos longos passeios a cavalo, sem pronunciar qualquer palavra, mas em comunhão das nossas almas. O seu respeito de cavalheiro deixava, por vezes, transparecer alguma ternura. A minha estima ganhou nuances de afecto.» (…) «Creio bem que, na solidão da tapada, tivemos um pelo outro as nossas tentações. No dia em que me disseram que se matou com uma bala na cabeça vivi uma dor íntima mais atroz por não a poder deixar transparecer. Esperei pela noite para chorar.» (…) «Porque se teria suicidado Joaquim?» (…) «Eu sei que não suportava as vozes maldizentes que faziam dele meu amante.» (…) «Creio compreender que Joaquim se matou para evitar que fizéssemos o que o rumor tinha por certo e que era contrário à minha honra.» (…) «Salvou-me de mim mesma porque eu não posso jurar que teria força para resistir.»

António Pires Nunes, «Mouzinho de Albuquerque», Prefácio, 2007, 108 páginas