Revista «Sol Nascente» («Antes quebrar que torcer»)

António Rego Chaves

Quase tudo o que neste espaço escrevemos sobre o semanário «O Diabo» poderia ser repetido em relação ao quinzenário «Sol Nascente». Sucedeu que, após uma fase pluralista, ambas as publicações se tornaram veículos autorizados e avalizados da propaganda estalinista de finais dos anos 30 do século XX, até que, em 1940, seriam proibidas. Como afirma Luís Crespo de Andrade no presente minucioso estudo a que deu o título «Sol Nascente – Da cultura republicana e anarquista ao neo-realismo»: «A concertação entre as duas publicações conheceu, na época, evolução significativa, tendo-se os seus representantes – Fernando Piteira Santos, Mário Dionísio, Manuel Campos Lima e Manuel da Fonseca, por parte de ‘O Diabo’; e Fernando Pinto Loureiro, Joaquim Namorado, Jofre Amaral Nogueira, Fernando Sá Marta, Armando Bacelar e Jorge Mendonça Torres, por parte do «Sol Nascente» – reunido em diversas ocasiões, de modo a coordenar a actividade editorial dos dois periódicos.» A estratégia era idêntica…

Partindo, em 1937, de um ecletismo que abarcava os neopositivistas Abel Salazar ou Ruy Luís Gomes, os velhos republicanos Nuno Simões e Jaime Cirne, os presencistas José Régio, João Gaspar Simões e Adolfo Casais Monteiro, monárquicos como Castelo Branco Chaves, os libertários Jaime Brasil, Correia de Sousa ou Luís Laranjeira, seareiros como António Sérgio, Hernâni Cidade ou Irene Lisboa, acabou por desembocar num terreno onde apenas se faziam ouvir as vozes, associáveis ao Partido Comunista e ao neo-realismo, de Mário Dionísio, Manuel da Fonseca, João José Cochofel, Fernando Namora, Joaquim Namorado, Alves Redol, Álvaro Cunhal, António Ramos de Almeida ou Jofre Amaral Nogueira.

«Na segunda metade do seu percurso, a revista ‘Sol Nascente’ perdeu a natureza eclética que a havia definido, para se tornar órgão de uma só doutrina, tendo passado a executar a estratégia política e cultural de um grupo coeso de articulistas, que nela divulgou a sua visão da história e do mundo, definiu o ideário da sua militância, elaborou um discurso próprio sobre a literatura e a arte» – sintetiza o autor. Ou seja, o quinzenário «converteu-se no órgão doutrinário e programático das concepções teóricas e políticas que constituíam a sua leitura do marxismo». Em nome do «materialismo dialéctico» arreda do seu horizonte a metafísica e o psicologismo e faz sua, sem lugar para dúvidas, reflexões críticas ou meditações «supérfluas», a «verdade absoluta» transmitida, não pelo marxismo, mas pelo estalinismo. A diferença – demonstraram factos históricos depois públicos e notórios – não era despicienda. Era abismal.

Os tempos não estavam para graças: ditadura salazarista, Guerra de Espanha, fascismo italiano, nazismo alemão, estalinismo soviético: tempos de dura intransigência, tempos de rude intolerância, tempos de insuperável ou insuperada cegueira ideológica. «Sol Nascente» decretava que «a critica é incompatível com a tolerância» e que – atenção! – «a crítica deve ir até à execução». Até à execução dos «culpados», tomando como exemplo a seguir os tristemente célebres Processos de Moscovo? Jofre Amaral Nogueira sentenciava que «o papel que muitos pretendem conferir à educação preliminar dos homens, à sua preparação anímica como base da modificação da sua existência histórica, não passa dum absurdo perigoso, dum ‘dorme que eu velo’ lançado dos gabinetes dos moralistas, como uma ingenuidade ao mesmo tempo burlesca e criminosa, a um mundo em convulsões de parto». Álvaro Cunhal garantia que não existe neutralidade, mesmo poética, e que «para os homens que se digladiam na encruzilhada um homem interessa ou vale na medida em que os acompanha na dor na luta e na esperança». Não, os tempos não estavam, mesmo, para graças.

Imperavam as directivas e conclusões do I Congresso dos Escritores Soviéticos (1934), sob a bandeira do «realismo socialista». Andrei Jdanov estatuía: «O romantismo revolucionário deve entrar na criação literária como uma das suas partes constituintes porque toda a vida do nosso Partido, toda a vida da classe operária e o seu combate voltam a unir o trabalho prático mais severo e racionalmente mais sustentado a um heroísmo e perspectivas grandiosos.» As Edições «Sol Nascente publicam «Ilusão da Morte» (1938), de Afonso Ribeiro, e «Sinfonia da Guerra» (1939), de António Ramos de Almeida. Armando Bacelar afirmará que «Sinfonia da Guerra» deu início, com «Gaibéus» de Alves Redol, e «Rosa dos Ventos», de Manuel da Fonseca, igualmente editados em 1939, ao movimento literário neo-realista. Não era uma opinião, era uma ordem.

Ninguém esperaria um «milagre», o desfecho da batalha era previsível. Ei-lo, evocado pelo autor: «Em 1940 a relativa permeabilidade [dos Serviços de Censura] foi substituída pela proibição pura e simples das revistas em que a ‘geração jovem’ tinha conquistado posições e se vinha afirmando. Foi o caso de ‘O Diabo’, que publicou o seu último número em 11 de Dezembro de 1940, de ‘Pensamento’, em que os articulistas marxistas ganhavam peso crescente, que se extinguiu em 15 de Dezembro de 1940, e, antes destas, de ‘Sol Nascente’, que publicou a sua derradeira edição em 15 de Abril de 1940. Curiosamente, foi também no ano dos centenários [da formação da nacionalidade e da Restauração] que a ‘Presença’, dos exprobrados [José] Régio e [João] Gaspar Simões, deixou de se publicar.»

«Sol Nascente» manteve até ao fim, apesar das ameaças de extinção dos censores, a sua incómoda secção «crónica mensal», em que comentava, à luz da ofensiva diplomática da URSS após o Pacto Germano-Soviético, «a evolução da situação política internacional, que deixara de ser compreendida como sendo um confronto que opunha o nazismo e o fascismo aos aliados para ser explicado como uma disputa entre potências imperialistas.» Os seus colaboradores eram militantes da Resistência. Preferiram «quebrar» a «torcer». O salazarismo quebrou-os. Caíram de pé.

Luís Crespo de Andrade, «Sol Nascente – Da cultura republicana e anarquista ao neo-realismo», Campo das Letras, 2007, 205 páginas