Victor de Sá (Liberalismo e ideias socialistas, 1820-1852)

Ao serviço dos «patas ao léu»

António Rego Chaves

Foi Victor de Sá um dos muitos portugueses ilustres que, nos anos 60 do século XX, procuraram o exílio em Paris – onde lhe foi facultado aquilo que, por cá, sendo um bem precioso, se encontrava à disposição de muito poucos docentes universitários, a liberdade de expressão do pensamento. Na Sorbonne apresentou, como tese de doutoramento, este texto, que em 1969 seria editado em Portugal pela prestigiada revista «Seara Nova».

Prefaciando, anos antes, no agitado 1962, as «Notas para a História do Socialismo em Portugal», de César Nogueira, publicadas pela Portugália, escrevia Victor de Sá que «só uma acanhada visão histórica dos nossos historiadores de mentalidade pequeno-burguesa fez com que o fenómeno do movimento socialista não tenha entrado ainda no âmbito da história contemporânea de Portugal». Salientava, por outro lado, que foi a partir de 1875 que o pensamento socialista se estruturou no Partido dos Operários Socialistas de Portugal, «transferindo para um plano do combate organizado o que até aí fora apenas um ideal de solidariedade».

O trabalho de Victor de Sá, enriquecido por extensa bibliografia, bem como por índices onomástico, de obras citadas, geográfico, analítico e de jornais e revistas, «luxos» pouco habituais, desde sempre, entre as editoras nacionais, constitui um texto ainda hoje dificilmente dispensável. De facto, é usual, mesmo em obras recentes consideradas fidedignas, falar das ideias socialistas como se elas apenas tido relevo em Portugal na última metade do século XIX – e não logo a partir do seu segundo quartel, como sucedeu.

Diga-se desde já que este estudo é bem mais do que o resultado de uma investigação centrada nas manifestações das ideias liberais e socialistas em Portugal, entre 1820 e 1852; trata-se, sim, de integrar o surgimento e o desenvolvimento das duas ideologias no contexto económico, social e político do período que decorre entre as datas mencionadas – e daí que a obra ponha à nossa disposição o essencial dos três primeiros decénios da história da monarquia constitucional que só em 1910 se viria a extinguir.

O autor deixa bem claro o papel que as grandes potências europeias da época, nomeadamente a Inglaterra e a França, desempenharam na repressão das veleidades revolucionárias nos dois países da Península Ibérica. No que ao nosso país se reporta, diz: «A partir do momento em que, nas invasões napoleónicas, uma esquadra inglesa levara a família real portuguesa para o Brasil (1807), a Grã-Bretanha passara a exercer efectivamente o seu domínio em Portugal: o exército era comandado por oficiais superiores britânicos, e o marechal Beresford, ‘generalíssimo’ das tropas portuguesas desde 1809, gozava em Portugal de autoridade mesmo superior à do governo da ‘Regência’: tinha poder análogo ao de um vice-rei.»

Os factos históricos não deixam dúvidas acerca da nossa dependência: «À Revolução de Setembro (1836) opuseram-se as coroas da Grã-Bretanha e da Bélgica; à Patuleia (1846-1847), as da Grã-Bretanha, da Espanha e da França. Nas vésperas da Revolução francesa de 1848, no momento em que o governo liberal de Lisboa se encontrava em posição bastante difícil, um exército espanhol, por um lado, e a esquadra britânica, por outro, intervieram, com a cumplicidade do governo de Guizot, para esmagar por completo o levantamento popular que há mais de um ano se desenvolvia.»

Correntes do chamado «socialismo utópico» (Saint-Simon, Charles Fourier, Robert Owen) vão, no entanto, influenciar escritores liberais portugueses da primeira metade do século XIX: o médico Manuel dos Santos Cruz, os «estrangeirados» Francisco Solano Constâncio e Silvestre Pinheiro Ferreira, Alexandre Herculano, António de Oliveira Marreca e António Feliciano de Castilho. Contudo, as ideias do socialista inglês hostis à propriedade privada e favoráveis à comunidade dos bens só teriam eco em Solano Constâncio. Uma outra parte da mensagem de Robert Owen foi, porém, bem acolhida pelos restantes: a que exortava as classes possuidoras a evitar a revolução, pondo em prática reformas sociais destinadas a melhorar a condição dos trabalhadores. Quanto aos dois franceses, a sua ideologia «não ofendia o sistema tradicional de propriedade», pelo que as suas «utopias» teriam sido facilmente assimiladas por intelectuais liberais.

Manifestações de «um socialismo de tipo pequeno-burguês mais ou menos oportunista, consoante provam os casos de Louis Blanc e de Proudhon» (as palavras entre aspas são da responsabilidade de Victor de Sá, porém todos sabemos que o autor de «Que é a Propriedade?» estava longe de ser, como «decretou» Marx em «A Miséria da Filosofia», um «pequeno-burguês») irão exercer influência, a partir dos finais dos anos 30 do século XIX, respectivamente, sobre Custódio José Vieira e Henriques Nogueira, e sobre Amorim Viana e Oliveira Pinto. Mas será com maior nitidez em 1848, após a Revolução de Fevereiro, que, em Coimbra, «os ideais socialistas vão levantar o entusiasmo da juventude». Três estudantes de Direito produzirão «obras subversivas»: Casal Ribeiro («Hoje não é Ontem» e «O Soldado e o Povo»); Custódio José Vieira («Um, Alguns e Todos ou a história de um absurdo»), Joaquim Marcelino de Matos («Bem depressa o Socialismo»).

Em abono destes três jovens sonhadores se diga: o primeiro, na Patuleia, fora membro da Junta Revolucionária de Coimbra; o segundo participara também naquela sublevação popular; o último pertencera aos batalhões académicos da revolta. Ou seja: todos ofereceram corpo e alma, como lhes ordenaram o respeito por si próprios e a fraternidade, à nobilíssima causa que defendiam. O que fizeram depois talvez pouco importe, ou seja, se ou quando as circunstâncias os levaram a esquecer a Patuleia. Importa, sim, o que hoje se não usa e poucos entenderão – que uma vez tivessem posto ao serviço de anónimos «patas ao léu» o bem mais caro que possuíam: a vida.

Victor de Sá, «A Crise do Liberalismo e as Primeiras Manifestações das Ideias Socialistas em Portugal (1820-1852)», Seara Nova, 1969, 432 páginas