Nietzsche entre «portugas»

António Rego Chaves

Um dos principais méritos deste livro talvez seja, não o de nos informar acerca do pensamento de Friedrich Nietzsche (1844-1900), mas o de deixar bem claro quanto a bibliografia activa e passiva do grande poeta-filósofo em Portugal, entre 1892 e 1939, nos confirma na nossa já velha posição de cauda mental da Europa. É confrangedor verificar que as duas primeiras traduções portuguesas de obras de Nietzsche, aliás de duvidosa qualidade, só surgem em 1913, ao passo que, nesta data, tudo o que Nietzsche escrevera se encontrava já traduzido em Espanha, França e Inglaterra. Quanto à bibliografia passiva, é melhor nem fazer comparações, tal a indigência dos nossos «estudiosos».

Como salienta Américo Enes Monteiro, são de sublinhar, inicialmente, as abordagens disfóricas de Sampaio Bruno (1857-1915), que considera ter Nietzsche ousado «diabólicas blasfémias»; a de Ângelo Jorge (1883-1922), que apelida de «boutade especulativa» e de «blague filosófica» a concepção do Super-Homem; de Maria Amália Vaz de Carvalho (1847-1921), para quem o grande pensador não passa de um «alucinado» e de um «pobre», sendo a sua doutrina do Homem Supremo simplesmente «medonha». É certo que João de Barros (1881-1960) classifica os livros de Nietzsche como «verdadeiros poemas» e João Grave (1872-1934) o tem por «grande filósofo» e «uma das maiores figuras do seu século». Mas, fossem eles disfóricos ou eufóricos, os comentários da maioria dos nossos intelectuais, pelo menos até 1910, e apesar de eles terem ao seu alcance numerosas obras em língua castelhana e francesa, revelam uma incomensurável ignorância e confusão acerca do verdadeiro conteúdo e sentido da autêntica revolução operada pelo genial «eremita de Sils-Maria» na filosofia ocidental.

«Com a proclamação da República e com a democratização da cultura, escreve o autor, manifesta-se também a vontade europeizar Portugal. O contributo dado, neste campo, pela ‘Renascença Portuguesa’, foi notável.» (…) «Da leitura literária e filosófica feita nas duas primeiras décadas da história da recepção da obra de Nietzsche, passa-se a uma leitura de conotações mais políticas, ditadas pelos acontecimentos de 1914-1918, à luz dos quais se levantava o problema de saber até onde ia a responsabilidade do apologeta da Vontade de Poder, do ideal do Homem Supremo e da Moral dos Senhores, por tudo aquilo de que a Alemanha e a Europa estavam a ser palco. Culpabilizam-no Leonardo Coimbra, Teixeira de Pascoais, Henrique Lopes de Mendonça, Guerra Junqueiro e Aarão de Lacerda. Absolvem-no Joaquim Manso, Jaime Cortesão e João de Barros.»

Na recepção de Nietzsche em Portugal ocuparão, depois da «Renascença Portuguesa», lugar destacado a «Seara Nova», o Primeiro Modernismo e o Segundo Modernismo, este último corporizado pela revista «Presença». Raul Proença (1884-1941) conquistará, entre todos os comentadores e intérpretes do filósofo, um estatuto sem par. Abandonando o positivismo, o eminente seareiro, que lia Nietzsche no original alemão, destaca-se pela profundeza e honestidade intelectual, ainda que venha a admitir – porventura induzido em erro por algumas escandalosas falsificações do obra de Nietzsche operadas por sua irmã – que o filósofo estaria, dada a opção pelo aristocratismo e pelas elites lhe ditar posturas antidemocráticas, anti-socialistas, antifeministas e anticristãs, «com os fascistas e os nazis», como, aliás, descaradamente esteve Elisabeth Förster-Nietzsche. Ora, se Nietzsche nem sequer foi um seguidor de Bismarck e Guilherme I, em 1871, por que motivo se haveria de posicionar, caso fosse vivo nas décadas de 20 e de 30 do século XX, ao lado de Mussolini e Hitler?

Conclui o autor: «Raul Proença encarna a expressão mais destacada da recepção nietzschiana entre nós. Ele é o estudioso mais crítico da obra de Nietzsche e o investigador mais empenhado em descobrir o seu significado e o seu alcance, até aos mais ínfimos pormenores. A sua obra ‘O Eterno Retorno’, só postumamente publicada, constitui testemunho eloquente da recepção da obra de Nietzsche, pois é o estudo mais sério e mais completo e implica um esforço ingente no sentido de aprofundar toda a obra do filósofo, de clarificar o pensamento aí veiculado, particularmente a concepção do Eterno Retorno, e de deduzir todas as suas implicações nos mais diversos domínios.»

Quanto aos modernistas, o lugar em evidência pertence a Fernando Pessoa (1888-1935), «não por ter deixado qualquer estudo abordando expressamente algum aspecto específico da obra do apóstolo do deus Dioniso, mas pelo intenso diálogo, ora assumido ora negado, que manteve com o crítico por excelência do decadentismo finissecular e pela sua opção pelas elites culturais. As raízes nietzschianas no pensamento de Pessoa são detectáveis em muitos dos milhares de páginas deixadas inéditas no celebrado baú e entretanto publicadas, as quais revelam igualmente que o seu autor abordou temática idêntica à abordada por Nietzsche, embora sob uma óptica quase sempre divergente.»

Há, segundo cremos, uma pertinente crítica de fundo a fazer a este valioso ensaio de Enes Monteiro, embora o autor desde o início torne explícito que se empenhou, «não tanto num estudo de recepção adequada ou não adequada, mas na explicitação do modo, das razões do acolhimento dispensado à obra e ao pensamento nietzschianos e da sua acção na vida cultural portuguesa». Por outras palavras: assume ter-se cingido a uma história meramente descritiva da recepção, abdicando de uma história normativa – o que implicaria que informasse o leitor, passo a passo, das várias interpretações conhecidas do pensamento de Nietzsche e, também, da sua própria interpretação desse mesmo pensamento. Talvez fosse excessivo para uma dissertação de doutoramento e o seu labor, que decerto foi intenso, se tivesse de prolongar por mais alguns anos. Mas foi pena – até porque muito gostaríamos que os «portugas» deixassem de estar colocados, no que à boa compreensão de Nietzsche se refere, nitidamente afastados da cauda mental da Europa…

Américo Enes Monteiro, «A Recepção da Obra de Friedrich Nietzsche na Vida Intelectual Portuguesa – 1892-1939», Lello Editores, 2000, 501 páginas