A alternativa oitocentista (Garrett)

António Rego Chaves

Escreveu Joel Serrão no «Dicionário de História de Portugal» que a obra de Almeida Garrett «Portugal na Balança da Europa», publicada pelo autor no exílio, em pleno miguelismo, e o «Romanceiro e Cancioneiro Geral» – «a lúcida problemática do presente de mãos dadas com o intento de remoçamento do passado – são aspectos inseparáveis de um mesmo processo mental; por isso ainda, o colaborador e amigo de Mouzinho da Silveira e de Passos Manuel – dois momentos cruciais da inovação oitocentista portuguesa – conjuga-se harmoniosamente com o autor de ‘Frei Luís de Sousa’ e de ‘Viagens na Minha Terra’, dois padrões não só da literatura portuguesa contemporânea, mas também daquilo que se poderá denominar, com alguma redundância, condição e roteiro da consciência burguesa oitocentista em Portugal.»

Reconhecia igualmente Jacinto do Prado Coelho que «o lugar de Garrett não é apenas na História da Literatura ‘stricto sensu’, mas também na história da vida político-social portuguesa e na história das ideias». E prosseguia: «Bastariam os títulos de introdutor do Romantismo em Portugal e de reformador do teatro português para tornar Garrett um dos grandes nomes da história da nossa cultura. Mas o modo como introduziu e reformou mais o impõe ao nosso apreço. A consciência do dever cívico do escritor, o tenaz propósito de arrancar Portugal à letargia, dando-lhe o sentimento obliterado da personalidade colectiva (e daí a procura das fontes genuínas do lusismo nos momentos-cumes da nossa História e no folclore), nortearam do princípio ao fim a sua acção de letrado e de homem público.» (…) «Em todos os domínios marcou atitude de meio-termo exemplar: equilíbrio, na política, entre liberdade e ordem, renovação e tradição; equilíbrio, na cultura, entre arte pura e arte comprometida, entre popularismo e aristocracia mental, entre nacionalizar e abrir Portugal às correntes da cultura europeia, entre idealismo e atenção ao real, entre espontaneidade e apuro estético.»

«Portugal na Balança da Europa» (1830) esboça a ligação entre o Portugal anterior à expansão, o de depois do descobrimento da América e o dos três primeiros decénios do século XIX, uma vez perdido o ouro do Brasil e ameaçados o comércio e o tráfico de escravos na terra achada por Cabral. Detém-se na situação interna de cada uma das grandes potências da época e denuncia o apoio destas aos absolutistas nos confrontos com os liberais, apoio que só acabaria em 1834, quando a Convenção de Évora-Monte pôs fim à guerra civil e determinou o desterro definitivo do «usurpador» D. Miguel.

É bem certo que, após a derrota de Napoleão e desde o Congresso de Viena (1814-1815), os «quatro grandes» (Rússia, Áustria, Prússia e Grã-Bretanha) pretenderam sem rebuços impor a paz, a guerra e até os regimes políticos que tinham por convenientes para eles e para o Mundo, fosse em Nápoles e no Piemonte, na Grécia, em Espanha ou em Portugal. A omnipresente ameaça da Santa Aliança (formada pela Rússia ortodoxa, pela católica Áustria e pela Prússia protestante), apostada no jugulamento de todas as ideias liberais, determina parcialmente este indignado libelo do nosso Garrett, decidido opositor da monarquia «gótica» e incondicional paladino da monarquia constitucional.

Escreveria o autor, em 1840, que Portugal se achava dividido em três partidos: «o do absolutismo, princípio velho e corrupto»; «o da democracia, princípio decrépito»; e o da monarquia constitucional, que representaria «o verdadeiro progresso». Explicava: «É a ele que pertencem as grandes influências sociais, quer da inteligência, quer de riqueza, quer de virtudes civis», defendendo a civilização e o povo contra a oligarquia, «poder de poucos contra muitos» –, mas não contra a aristocracia, «autoridade dos melhores e dos mais ilustres». Poderia a aristocracia degenerar em oligarquia? – perguntara-se já em 1830. Deixara claro que sim: a seu ver, mesmo quando o poder dos nobres diminuía, aumentavam os do rei e do clero. Sendo a pobreza «a maior inimiga da liberdade», «a funesta liga sacrilegamente chamada do trono e do altar», que até a leitura dos livros santos proibiu, teria tornado a religião cristã «o maior e mais poderoso auxiliar dos déspotas». «Pervertido pelos abusos sacerdotais, o Cristianismo serviu os tiranos contra os povos», ao passo que a Reforma «auxiliou os povos contra os tiranos. A história da Alemanha, da Inglaterra, da França nos séculos XVI, XVII e princípios do XVIII o tem patente a todos».

E o Portugal de 1820? «Reduzido a colónia das suas colónias, governado por um despotismo delegado, corrupto e impotente, sem comércio, sem indústria, sem agricultura, sem administração, «porque não é administração o peculato desfaçado e público, o roubo e a venalidade patente, descera ao mais abjecto, mais vilipendioso estado a que jamais se viu baixar nação sem haver perdido sua independência; conquanto pouco era a independência de um Estado na máxima parte governado por estrangeiros delegados de um chefe ausente.» Fizera-se uma revolução, é certo. Mas uma revolução apenas militar, e esse teria sido o erro capital. «Demonstrado é já hoje que a totalidade do povo jamais se interessará por mudanças políticas que ela própria não tenha feito, ou para as quais, pelo menos, não tenha grandemente concorrido.»

Que poderia ser Portugal na balança da Europa, após o «Waterloo dos povos», ou seja, o apeamento do reaccionário monarca francês Carlos X em 1830? A alternativa era «simples e clara»: ou tornar-se numa potência de facto independente da tutela inglesa ou voltar a ser província de Espanha. Noutros termos, ou sacudir de vez a intromissão estrangeira, livrar-se do jugo miguelista e adoptar a monarquia representativa, ou integrar uma imaginária Federação Ibérica, se a oligarquia internacional o obrigasse a «queimar nos altares da liberdade o palácio da independência nacional». Curiosas palavras, à luz da teoria e da prática da União Europeia e da Espanha no século XXI…

Almeida Garrett, «Portugal na Balança da Europa», Livros Horizonte, 2005, 135 páginas