Batalhas contra o obscurantismo (Portugal)

António Rego Chaves

Eis uma obra notável acerca das vicissitudes dos contactos de Portugal com a Cultura do Velho Continente nos séculos XVI, XVII e XVIII que, entre nós, tiveram como notas salientes as consequências dos Descobrimentos e a perda da independência, a Restauração e a governação do Marquês de Pombal. Antigo professor da Universidade de Coimbra e da Universidade Nova de Lisboa, José Sebastião da Silva Dias (1916-1994) põe em evidência a via sinuosa que nos conduziu do Renascimento e a Contra-Reforma, passando pelo bafiento aristotelismo seiscentista, até ao Iluminismo. As suas peremptórias conclusões não parecem, porém, distanciar-se do deplorável sectarismo de um Fortunato de Almeida em louvor de D. João V e em desfavor de D. José I: «Não há mais lugar para duas lendas importantes da nossa História: uma, a que figura a cultura escolástica parada nos conceitos do Curso Conimbricense, sem ulteriores progressos de carácter doutrinal ou mesmo científico; outra, a que pinta a renovação da cultura portuguesa como feito de Pombal, quando, na verdade, ela é independente do célebre ministro josefino e data mesmo de época anterior ao livro de Verney. Pombal não fez mais do que acelerar e, em parte, envenenar um movimento que vinha de longe e que, na altura das suas primeiras reformas, se tornara já incoercível.»

As linhas acima transcritas contrastam, no entanto, com o equilíbrio que o ensaísta alcança ao caracterizar a mentalidade portuguesa do século XVI, que apresenta como produto de duas linhas de influência, uma proveniente das actividades ligadas aos Descobrimentos e a outra derivada do contacto com a Europa culta, salientando que «o estímulo que os humanistas receberam do estrangeiro tiraram-no os cientistas e homens de acção da aventura ultramarina»; ou quando, apesar dos desastrosos eventos militares e políticos de 1580, atribui ao «desamor com que os sucessores de D. João III trataram a ‘Alma-Mater’ as principais responsabilidades na crise do ensino universitário»; ou, ainda, ao sublinhar o boicote dos jesuítas às teorias científicas e filosóficas de Galileu, Bacon, Descartes, Copérnico, Locke ou Newton no Portugal da Idade Moderna. Basta um exemplo para compreender o que aqui se passava à roda de 1698, em matéria de tolerância: naquela data ainda era denunciado à Inquisição um tal Tomé de Sousa, por possuir livros de Descartes, autor que na época se encontrava proibido, apesar de morto e bem morto e muito devedor da escolástica medieval…

Diz Silva Dias: «O Barroco surgiu entre nós como reacção contra o cosmopolitismo inicial da Renascença. A sua tradição é a da Contra-Reforma e assenta em dois postulados fundamentais: primeiro, a subordinação da inteligência a uma disciplina certa – a Escolástica; segundo, a submissão da consciência a uma autoridade indiscutível – a Igreja. O livre exame era o grande inimigo que lhe competia combater, tanto na ordem religiosa como no campo filosófico.» Afirma que «o senso crítico despertou pouco a pouco no país, esboçando-se nos fins do século XVII e princípios do XVIII uma corrente de opinião progressiva». Assevera que os seus representantes «falavam em voz baixa, por entre reverências aos costumes e preconceitos oficiais». Assim terá sido, mas que tal voz foi quase inaudível, que aquelas as reverências eram impudicamente rasgadas e que os referidos costumes e preconceitos revoltariam qualquer cabeça honesta, isso não é decerto menos verdade. Acresce que, entre «fradarias» e «bigoterias», como dizia Cunha Brochado, «os passatempos e miudezas do culto divino» davam mais cuidado à Corte, supersticiosa e pseudodevota, que o peso «de nossas desonras e de nossas misérias». Certo é que foram estrangeiros e estrangeirados quem nos libertou da Escolástica. «Velho no corpo e jovem na alma», o muito arguto D. Luís da Cunha apregoou bem alto que urgia reformar «a Corte, o exército, o ensino, os tribunais e, de um modo geral, todos os costumes e todos os ramos da administração pública». Mais: impunha-se, segundo o brilhante diplomata, acabar com o «vergonhoso mal» corporizado pelo «formidável Tribunal da Inquisição», pondo termo à distinção entre cristãos-novos e cristãos-velhos, restituindo aos judeus a liberdade de consciência, modificando a forma do processo inquisitorial e suprimindo a publicidade dos autos-de-fé.

Rivalidades profundas entre a Companhia de Jesus e a Congregação do Oratório, tentativas de conciliação entre Escolástica e Racionalismo, confrontos entre aristotelismo e experimentalismo, tudo foi por cá passando, apesar das prepotências do Santo Ofício. E o Iluminismo, como é bem sabido, chegou, cresceu e venceu o Barroco, tendo Descartes e Gassendi sido forçados a ceder os seus lugares a Newton e Locke, que desviariam para a lógica e a física o eixo do labor filosófico. O século XVIII amplia e completa, assim, o processo de secularização do pensamento iniciado no século XVII. E é neste contexto que surgem Ribeiro Sanches com as «Cartas sobre a Educação da Mocidade» e o «Método para Aprender a Estudar a Medicina» e Luís António Verney com o «Verdadeiro Método de Estudar». Este apadrinha as posições de Newton e Locke, critica o nosso isolamento cultural, rebela-se contra peripatéticos e cartesianos, opta pela razão em detrimento da autoridade, assume-se como defensor do experimentalismo e arreda do horizonte o saber apenas livresco. Nos domínios da literatura, da filosofia e da ciência, contribuiu decisivamente para que um país inteiro dissesse adeus ao obscurantismo seiscentista e se inserisse na contemporaneidade iluminista. Obviamente, com a ajuda de outros, entre os quais seria imperdoável não destacar, além de uns poucos padres da Congregação do Oratório e da Companhia de Jesus, a Academia dos Imitadores da Natureza, a Arcádia Lusitana e, acima de todos, quisesse ou não quisesse o erudito José Sebastião, o esclarecido Sebastião José, decerto um dos mais insignes europeístas e estadistas portugueses de todos os tempos.

José Sebastião da Silva Dias, «Portugal e a Cultura Europeia – Séculos XVI a XVIII», Campo das Letras, 2006, 351 páginas