Amar no Século das Luzes (Madame du Châtelet)

António Rego Chaves

Émilie du Châtelet (1706-1749) possuía uma cultura notável: «sabia de cor Horácio, Vergílio e Lucrécio», Tasso, Milton e Locke «eram-lhe familiares» – segundo o grande François-Marie Arouet, dito Voltaire, desde 1733 o mais célebre dos seus ilustres amantes, entre os quais há que referir o duque de Richelieu e Maupertuis. Além disso, a marquesa escreveu uma «Dissertação sobre a Natureza e a Propagação do Fogo», atreveu-se a empreender um erudito «Exame da Bíblia», traduziu e comentou os «Princípios Matemáticos da Filosofia Natural», de Newton. Em 1744, a vida afectiva desta brilhante intelectual é duramente abalada e parece à beira da derrocada: Voltaire, o «seu» Voltaire, pelo qual abandonara Paris, marido e filhos, apaixona-se por uma sobrinha, Marie Louise Mignot, agora Madame Denis, de 32 anos, filha de sua irmã Catherine Arouet e viúva de fresca data.

Termina o idílio entre Émilie e o filósofo. Este, já cinquentão, parte inflamado para bem longe do castelo de Cirey, que mandara restaurar, graças às suas amplas disponibilidades financeiras, para aí habitar com Madame du Châtelet e se dedicar à sua obra. Quando a marquesa morre, poucos dias depois de dar à luz uma filha do seu último e jovem amante, um tal Saint-Lambert, Voltaire parece, no entanto, dilacerado: «Perdi a metade de mim próprio, uma alma para a qual a minha era feita, uma amiga de vinte anos que tinha visto nascer. O mais terno dos pais não ama de outra forma a sua única filha.»

No prefácio que escreveu para este livrinho póstumo, publicado pela primeira vez em 1779, Elisabeth Badinter – nos últimos tempos muito criticada por certos movimentos feministas devido ao facto de ter contestado a insistente «retórica da vitimização» posta ao serviço da causa da mulher – chama a atenção para o que considera ser o fulcro do «Discurso sobre a Felicidade». Este seria muito menos um texto mais ou menos geral e abstracto sobre o tema em apreço do que uma meditação de carácter autobiográfico, já redigida a frio, sobre o luto da autora perante o termo da relação com François-Marie – ou, mesmo, poderíamos acrescentar, um melancólico e definitivo «ajuste de contas» com o homem pelo qual, em tempos, «tudo» abandonara. Agora, que lhe resta? A vivacidade da inteligência, uma biblioteca de 21 mil volumes, a matemática e a física, a filosofia e a crítica teológica, o alemão e o grego, a ópera e o teatro, vestidos e diamantes, gastronomia e prazeres do sexo? Tudo isso ela apreciara sem restrições, mas quase sempre com Voltaire bem junto de si. Chegara a altura de enterrar o passado.

Madame du Châtelet é altiva, assumida hedonista e mulher de armas: não exibe lágrimas em público, racionaliza os dias de sofrimento e ousa mesmo lançar um olhar quase displicente para o futuro que a espera. Dir-se-ia que, por vezes, se dirige a Voltaire, ao expor, com rigor geométrico, o seu raciocínio: «Felizmente que depende apenas de nós fazer antecipar o termo da nossa vida, se este se fizer esperar demasiado; mas, desde que nos disponhamos a suportá-la, devemos procurar fazer penetrar o prazer por todos os poros que o introduzem até à nossa alma; não temos outras obrigações.» Não conhece meias medidas entre a vivência das paixões do corpo e do espírito e a morte física e mental: a longevidade é a última das suas íntimas aspirações de «femme de tête» habitada por um temperamento de fogo.

«Temperamento de fogo», mesmo? Sem dúvida. Atente-se nestas frases que nos deixou sobre a paixão: «Se este gosto mútuo, que é um sexto sentido, e o mais fino, o mais delicado, o mais precioso de todos, chegar a juntar duas almas igualmente sensíveis à felicidade, ao prazer, tudo está dito, nada mais resta fazer para se ser feliz, tudo o mais é indiferente; apenas a saúde se torna necessária. Há que empregar todas as faculdades da nossa alma para gozar esta felicidade; há que deixar a vida quando a perdemos, e estar bem certo de que os anos de Nestor nada são comparados com um quarto de hora de uma tal bem-aventurança.» Mas a argúcia de quem sabe, por saber de experiência feito, do que fala, nunca está ausente das voluptuosas vertigens sentimentais de Émilie: «Para conservar por muito tempo o coração do nosso amante, é sempre preciso que a esperança e o temor se façam sentir sobre ele. (…) Começam por adorar-nos, é impossível que assim não seja; mas logo a certeza de ser amado e o aborrecimento de estar sempre prevenido, a infelicidade de nada ter a temer, desvanecem os gostos. Deste modo é feito o coração humano, e que não se pense que assim falo por rancor.» (…) «Fui feliz durante dez anos, (…) eu amava pelos dois…» Enfim, as ternas e eternas farpas dos amores mortos, agora em pleno Século das Luzes – aliás, o tempo do celebérrimo Choderlos de Laclos e das suas tão instrutivas «Ligações Perigosas» (1782), que pouco poderiam ensinar à sábia autora do subtil, irónico e levemente amargo «Discurso sobre a Felicidade» …

Madame du Châtelet, «Discurso sobre a Felicidade», Relógio D’Água, 2004, 51 pag., 8 €