Homessa, releia o Eça!

António Rego Chaves

Tinha eu uns catorze anos quando me apresentaram formalmente Eça de Queiroz, no Liceu Passos Manuel – e logo a professora nos mandou deglutir «A Cidade e as Serras». Foi trabalho de monta, talvez a preparar-nos para o que no ano seguinte viríamos a ter com «Os Lusíadas», mas ainda me lembro de me crescer água na boca com as favas e o arroz e o frango assado com que o Jacinto se deliciou em Tormes, do telefone que lá mandou instalar para não perder de todo o contacto com os aconchegos da civilização e de ele andar a ler, sabe-se lá por que carga de água, o Quixote.

O tempo passou e depois tive de presenciar, enfadado, a estéril polémica clubista entre os do Eça e os do Camilo, uma espécie de «derby» que, como viria a tornar-se óbvio, não contava, nem de longe nem de perto, para a taça dos campeões da Literatura. Era só coisa cá dos nossos burgos, incapaz de chegar a Trás-os-Montes, quanto mais a Paris de França ou a Paris-Texas.

Percorro agora este livro de Miguel Real e não posso deixar de me sentir ofendido pelo que nunca me explicaram no Passos Manuel acerca do Eça. É que, afinal, o nosso cônsul em Havana nunca andou a pressagiar e a advogar o conservadorismo que pôs fora de lei os nossos verdadeiros republicanos, mas, muito pelo contrário, andava à procura de si próprio sob o manto diáfano de Portugal, ou andava à procura de Portugal sob o manto diáfano de si próprio. A psicanalistas e a sociólogos o cuidado de contar.

Verdade, verdade, é que Miguel Real produziu obra de mérito ao inventariar o que tem sido dito sobre Eça, ao separar o trigo do joio, ao «reabilitar» perante muitos dos seus distraídos leitores o «velho» Eça. Porque, a acreditar no autor – e não existem razões para duvidar do seu avisado juízo – quem redigiu «A Cidade e as Serras» foi um notável ensaísta do século XIX. Reconhecei-lhe, pois, esse estatuto, e vereis que o último Eça, ou seja, aquele que escreveu nos anos 90 de oitocentos, merece mais do que o olhar vago e displicente de quem aprecia, um tanto ou quanto sobranceiro, uma peça muito «ultrapassada» do folclore nacional.

Eis as teses de Miguel Real, sintetizadas logo nas primeiras páginas desta lúcida introdução ao pensamento de Eça nas suas derradeiras obras:

«1. O Último Eça não foi um Eça burguesmente resignado, convertido ao santo lar parisiense, ao tradicionalismo ruralista português e ao fundo católico patrioteiro nacional ou nacionalista – visão que o Estado Novo [o tal que compeliu a minha geração a ler ‘A Cidade e as Serras’] propagandeou e incensou, retorcendo abusivamente a interpretação da obra de Eça dos últimos doze anos da sua vida;

2. O Último Eça não foi um Eça revolucionário militante, socialista-cristão, pregador do ideal franciscano de vida, um «santo revolucionário» ou um «revolucionário santo» – visão que António Sérgio e Jaime Cortesão desenvolveram como contestação da interpretação estadonovista sobre a obra de Eça;

3. O Último Eça não foi um Eça fradiquista, decadentista, vencidista, diplomata resignado, cidadão passivo, ‘insulado’ na sua concha parisiense de pequeno-burguês, projectando na sua consciência individual de estrangeirado o drama da ‘pátria’, como António José Saraiva, com a tese do ´fradiquismo’, e António Sérgio, com a tese sobre o ‘Tédio do Ócio’, visaram demonstrar, sobrevalorizando os aspectos revolucionários da obra de Eça escrita na década de 1870 e minimizando a obra escrita na década de 90;

4. O Último Eça foi um Eça de sensibilidade e consciência profundamente empenhadas na elevação económica e social das massas urbanas e rurais ‘pobres’, alimento das suas crónicas jornalísticas, transferindo, porém à semelhança de Antero de Quental e Oliveira Martins da década de 1880, o empenho político-revolucionário dos 20/30 anos para um comprometimento ético universal, não cristão mas meta-histórico (ainda que ilustrado com figuras históricas da tradição cristã), não exclusivamente português mas europeu, problematizador do estado de esgotamento civilizacional da Europa (A ‘Correspondência de Fradique Mendes’, e ‘A Cidade e as Serras’) e de Portugal (‘A Ilustre Casa de Ramires’ e ‘A Cidade e as Serras’)».

Antes de analisar o que chama «o Humanismo de Jacinto», «o Humanismo de Fradique Mendes» e o «Humanismo de Gonçalo Mendes Ramires», Miguel Real define os parâmetros entre os quais se move o pensamento do «Último Eça»»: «Fazer a síntese entre S. Paulo e Karl Marx (…) parece convir em perfeição ao esboço do pensamento filosófico presente nas obras do Último Eça: S. Paulo, não enquanto iluminado da Estrada de Damasco, que se reconverte a Cristo e prega a verdade da vida aos pagãos (não-judeus), mas enquanto difusor da bondade evangélica entre os escravos romanos e enquanto promotor da igualdade entre cidadãos e escravos, apelando para a libertação destes; Karl Marx, não no sentido do criador da dogmática comunista, mas no sentido de consciencializador histórico da miséria operária existente nas grandes cidades industriais da Europa e dos Estados Unidos da América e da consequente necessidade de se garantir satisfação económica e justiça social a todo aquele que ‘tinha fome e sede’.»

Resumindo: «Fazer o bem constitui-se como a grande certeza de Eça da década de 1890: privilegiar o outro – o que sofre por carência de pão –, generalizar a justiça e partilhar a riqueza. Deste modo, a obra de Eça da década de 1890, se já não é militante e revolucionária ao modo dos princípios da década de 1870, permanece, no entanto, insubmissa, revoltada e satírica enquanto arma de denúncia da injustiça e dos privilégios.»

Alguém se atreverá a duvidar destas conclusões de Miguel Real? Homessa, pois que releia o Eça!

Miguel Real, «O Último Eça», QuidNovi, 2006, 236 páginas