Moisés,hoje, para quê? (Savater)

António Rego Chaves

O espanhol Fernando Savater, adversário militante do «fanatismo étnico» da ETA e figura de destaque do movimento cívico «Basta Ya», Prémio Sakharov dos Direitos do Homem, catedrático de Filosofia na Universidade Complutense de Madrid, ensaísta, dramaturgo e polemista, autor de umas cinco dezenas de obras traduzidas em pelo menos catorze línguas, é um intelectual que cultiva com notável êxito o sentido de humor. Apesar se considerar uma espécie de «Salman Rushdie portátil», porque não pode sair à rua sem escolta policial, nem que seja para tomar um descafeinado, a fim de evitar um hipotético atentado dos «etarras», este corajoso antifranquista dos anos 60 não desiste de apregoar bem alto convicções anarquistas e libertárias, bem como uma intransigente independência relativamente a todos os partidos políticos representados no Congresso dos Deputados. Marxista assumido (mas só da burlesca «tendência Groucho»), respondeu sem rodeios quando interrogado sobre a questão de Deus: «Resolvi definitivamente o problema quando tinha treze anos: sou tão hermético a Deus como ao flamenco». Talvez esta não seja toda a verdade, mas é sem dúvida uma graça que deve ser tomada a sério.

«Os Dez Mandamentos no Século XXI – Tradição e Actualidade do Legado de Moisés» constitui um ensaio de alguém que tem o mérito de escrever para muitos – e não apenas para especialistas, estudantes ou outros extractos sociais mais ligados ao mundo da cultura. O erudito dá lugar ao charlador, porventura lúdico e às vezes superficial, mas conduzindo os leitores a meditar sobre os tempos passados e actuais, as suas virtudes, os seus defeitos e a suas diferenças. E não se dispensa de falar grosso, isto é, mesmo em definitivo, transmitindo o seu «testamento» a quem o quiser ler. Intitula o último capítulo «Os homens têm necessidade de um Deus terrível» e adverte-nos: «A ideia de um Deus terrível, cruel e vingativo não está mal pensada, porque, em última instância, todos os tabus têm qualquer coisa de terrível. Que aconteceria se os não observássemos? Que aconteceria se todos nós, homens, decidíssemos matar-nos uns aos outros? Se decidíssemos renunciar à verdade ou roubássemos a propriedade dos outros ou violássemos todas as mulheres com quem nos cruzássemos no caminho? Um mundo assim seria medonho.»

A despeito de uma certo odor maurrasiano detectável nas interrogações acima transcritas – pois não foi o «pai» da «Action Française», apesar de irredutível agnóstico, um incondicional defensor da Igreja Romana enquanto princípio de ordem e «templo das definições do saber»? -, Fernando Savater esboça um claro aceno de simpatia a Jesus, logo pudicamente disfarçado em nome da sacrossanta ordem social estabelecida. Escreve: «Todos apostamos na imagem que Cristo introduziu no mundo, a de um deus martirizado, humano e próximo. É indubitável que estamos perante a imagem poética de um ser infinitamente superior. Mas, do ponto de vista da legalidade, o deus vingativo e cruel é muito mais eficaz, porque o deus amável diz: “Amai-vos uns aos outros e não tereis necessidade de leis”… e é verdade, mas por desgraça não nos amamos uns aos outros. E voltamos então a outro preceito mais contundente: “Temei-vos uns aos outros e aceitai as leis.”»

A obra insere-se, pois, bem mais num contexto de preocupações sociológicas, jurídicas e políticas do que no terreno ontológico, metafísico ou teológico: a (in)tolerância, o (in)cumprimento da palavra dada, nomeadamente no que se refere às promessas apresentadas durante as campanhas eleitorais, o (neg)ócio e o (des)emprego, o (des)respeito pelos pais e pelos velhos que já não se encontram envolvidos na esfera produtiva, a (in)justiça distributiva dos bens materiais, à escala nacional ou internacional, por acção ou omissão, a (in)fidelidade conjugal, a (i)legalidade dos comportamentos fiscais de ricos e pobres ou dos (in)corruptos responsáveis pela administração pública, as (in)verdades veiculadas por publicitários, jornalistas e governantes, a (in)apetência pela mulher do próximo e, finalmente, a persistente, a execrável, a omnipresente inveja – o mais terrível flagelo que varre o mundo contemporâneo dito «civilizado» e «democrático», onde, «uma vez que todos somos iguais, todos podemos invejar todos». «O que inveja rouba, o que inveja levanta falso testemunho, o que inveja mata, o que inveja comete adultério. A inveja é a raiz dos grandes males da sociedade.» E Fernando Savater conclui: «Bem vistas as coisas, a análise da cobiça abre-nos a uma reflexão que toca o fundo da nossa sociedade, sobre os nossos bens, sobre o modo como os repartimos e os compartilhamos e sobre a maneira como convivemos.» Não poderia esta afirmação, decerto complementar de muitas outras que podemos encontrar nos Actos dos Apóstolos, ser subscrita hoje por qualquer cristão digno desse nome?

Fernando Savater, «Os Dez Mandamentos no Século XXI – Tradição e Actualidade do Legado de Moisés», Publicações Dom Quixote, 2004, 156 pág.