Maquiavel («O Príncipe»)

Meio homens, meio bestas…

António Rego Chaves

Talvez não haja já muito de novo a dizer sobre Maquiavel (1469-1527): como recorda Diogo Pires Aurélio na cuidada introdução que elaborou para esta obra, que laboriosamente traduziu e anotou, do eminente florentino, Espinosa, Bayle, Fichte, Hegel, Clausewitz, Gramsci, Cassirer, Leo Strauss e Althusser – além de muitos outros mestres-pensadores – dissertaram sobre o autor d’«O Príncipe» (1513). Que se poderá, então, acrescentar?

Diogo Pires Aurélio cumpre com denodo a tarefa de pesquisar o que de mais importante foi explicado acerca de um autor que ainda não cessou de gerar acesas polémicas, relevando «a interminável discussão entre aqueles que o têm por mestre de soberanos, eficientes mas pouco escrupulosos, e os que preferem ver nele um avisado inspirador da república e da liberdade». A questão fundamental, porém, talvez não a devamos situar em tal plano, mas no das relações entre política e moral. Devem os dirigentes abdicar de códigos de honra, conquistando e conservando o Poder a qualquer preço? Essa a mãe de todas as questões, ontem como hoje, em pleno século XXI.

Quando condenamos os actuais governantes que fazem promessas e as não cumprem, que explicitamos senão um juízo ético, por muito que alguns teóricos – e, ai de nós, quase todos os práticos – queiram separar a política da moral? É evidente que, para Maquiavel, era arriscado ir tão longe; mas, ao retratar, nua e crua, a realidade que observava, será que incitaria alguém a aprovar o comportamento de «condottieri» sem escrúpulos, em nome da pretensa estabilidade das instituições e da paz, só aparente, entre os povos?

Caso admitamos que Maquiavel foi aqui um historiador da Antiguidade, um cronista da Europa, um repórter da Florença, do Papado e da Itália do seu tempo, ainda que muito longe de ser «neutral», talvez se desfaça grande parte dos equívocos que rodeiam o sentido e alcance d’«O Príncipe». Basta evocar a sentença de Espinosa: «O agudíssimo Maquiavel mostrou desenvolvidamente os meios de que o príncipe que se move apenas pelo desejo de dominar deve usar para poder fundar e manter um estado, embora não seja suficientemente claro com que finalidade.» (…) «Talvez ele quisesse mostrar quanto uma multidão livre deve ter medo de confiar absolutamente a sua defesa a um só, o qual, se não for vaidoso nem julgar que pode agradar a todos, tem de temer revoltas todos os dias, sendo por isso obrigado a precaver-se e a atraiçoar a multidão em vez de a governar.»

Se as palavras do filósofo da «Ética» têm alguma pertinência, não menos terão as de Hegel, quando denunciou o «exercício escolástico» de Frederico II da Prússia ao contrapor a Maquiavel «lugares comuns moralistas». Contra factos históricos não há argumentos – e o que «O Príncipe» nos faz presenciar está longe de ser uma teoria, antes se centrando na prática política que todos olhavam, mas poucos se arriscavam a dizer que viam.

Fichte interpretará o que dizia Maquiavel como sendo menos do domínio do normativo do que do descritivo: «É necessário a quem dispõe de uma república e nela ordena leis pressupor que todos os homens estão inclinados ao mal e tendem sempre a usar a malignidade do seu ânimo todas as vezes que tenham ocasião propícia para tal.» (…) «Na relação com os outros povos, não há nem lei, nem direito, excepto o direito do mais forte…»

Ernst Cassirer alvitrará: «Maquiavel estudou e analisou os movimentos políticos com o mesmo espírito com que Galileu estudou, um século depois, o movimento dos corpos ao caírem.» Ou seja: nem o empirismo indutivo de Bacon, nem o racionalismo dedutivo de Descartes: o método experimental da física moderna, que a ambos nega e supera, conservando-os. A opinião do autor de «O Mito do Estado» não está, porém, isenta de escolhos: o ensaísta d’«O Príncipe» olhou, viu e interpretou o que viu: não terá sido pouco, mas estamos longe do rigor próprio do investigador que, nas chamadas «ciências exactas», formula leis que regem os fenómenos que observa, procurando estabelecer entre eles relações de causa e efeito.

O realismo de Maquiavel, como evidencia Diogo Pires Aurélio, é inegável: «O príncipe que é generoso e cumula de benefícios os súbditos acabará, quando esgotar o que tem, por lhes exigir mais impostos, acabando assim com a fama contrária à que orientou a sua acção. Em contrapartida, o que é poupado e não distribui benefícios, a princípio, ganha fama de mesquinho, mas, em vindo a guerra ou outra calamidade, é capaz de as enfrentar sem ter de sacrificar o povo, adquirindo assim a fama oposta.» (…) «O impetuoso cai, quando chegam tempos em que seria recomendável a prudência. O prudente cai, assim que a ocasião deixa de ser propícia a grandes cautelas e exige, pelo contrário, decisões abruptas.» (…) «Bondade ou habilidade, ao cristalizarem em hábitos, tornam impossível o mudar sempre que os tempos mudam». Talvez se possa concluir que, em política, a monotonia põe em risco a conservação do mando, sendo a inteligência, como é por de mais sabido, «a capacidade de adaptação a situações novas».

Ainda uma última «lição» de Maquiavel: «Há dois géneros de combate: um com as leis, outro com a força. O primeiro é próprio do homem, o segundo das bestas. Mas porque o primeiro muitas vezes não basta, convém recorrer ao segundo. Portanto, é necessário a um príncipe saber bem usar a besta e o homem.» (…) «Estando, pois, um príncipe necessitado de saber usar bem a besta, deve pegar na raposa e no leão: porque o leão não se defende das armadilhas, a raposa não se defende dos lobos: precisa, pois, de ser raposa para conhecer as armadilhas e leão para assustar os lobos.» Meio homens, meio bestas, como em vernáculo sintetiza o autor da introdução, todos os políticos? Nada que não possamos hoje testemunhar, mas só o fulgor do florentino permitiria tão certeira síntese em matéria de ciências humanas…

Maquiavel, «O Príncipe», Temas e Debates/Círculo de Leitores, 2011, 251 páginas