O Apocalipse de Mircea Eliade

António Rego Chaves

Mircea Eliade (1907-1986) tornou-se famoso devido à autoria de obras como o «Tratado de História das Religiões», «O Sagrado e o Profano» ou «O Mito do Eterno Retorno». Menos célebres são as suas «Memórias» e este «Diário». O texto português é precedido da «versão abreviada» de um muito complacente estudo biográfico do seu sobrinho Sorin Alexandrescu, reputado crítico, historiador e teórico da literatura. Quanto às notas de rodapé, não poucas vezes politicamente irrelevantes ou nada esclarecedoras, são da responsabilidade do prefaciador e do tradutor, Corneliu Popa.

Os editores negligenciaram, decerto, o facto de muitos leitores deste livro no nosso país não estarem a par do que era a Roménia anterior à ditadura de Nicolae Ceausescu. Este, aliás, passou nas prisões do fascista germanófilo Ion Antonescu a maior parte do tempo em que Mircea Eliade, por vezes discreto mas sempre convicto simpatizante da extrema-direita, desempenhava funções de adido na Embaixada em Lisboa. Convivia então com o seu influente «amigo» António Ferro e escrevia em termos grotescamente laudatórios sobre Salazar, como quando vislumbrou no rosto «iluminado de bondade» do manhoso tiranete de Santa Comba «algo de cândido, fresco, virginal».

Salientou Irina Livezeanu que a Roménia de entre as duas guerras mundiais «possuiu talvez o mais importante movimento fascista depois da Itália e da Alemanha», tendo como raízes um discurso tradicional de carácter populista, xenófobo e anti-semita, apoiado não apenas por ex-combatentes, como por estudantes e professores universitários, intelectuais e amplos estratos da população. Com efeito, a propaganda governamental, após a Grande Guerra, «fez uma conexão explícita entre judaísmo e bolchevismo, sustentando que apenas os judeus eram bolcheviques» e identificando a maioria dos líderes do regime húngaro de Bela Kun como judeus e desertores do exército da Roménia. Acresce que as ligações de Mircea Eliade à Legião do Arcanjo Miguel, depois conhecida por Guarda de Ferro, um temível bando de fanáticos ultranacionalistas, anticomunistas e anti-semitas responsável por múltiplos assassínios de políticos liberais, intelectuais e judeus, não oferecem hoje quaisquer dúvidas.

Obcecado pela perspectiva da «queda da Alemanha» e da «vitória do comunismo», mesmo antes do decisivo êxito soviético na Batalha de Estalinegrado, em que as tropas romenas foram aniquiladas, escreve, a 23 de Setembro de 1942: «Apavora-me o vazio que vejo à minha frente: a civilização latino-cristã sucumbindo debaixo da chamada ditadura do proletariado, de facto a ditadura dos mais abjectos elementos eslavos.» Em matéria de política fica tudo claro – excepto que o funcionário de embaixada não podia dizer em voz alta tudo o que confiava ao «Diário», sob pena de ser denunciado por algum vigilante colega, perder o emprego e se ver privado das inerentes mordomias.

O livro não se esgota, porém, nos aspectos acima apontados. Bem longe disso, e como regista Sorin Alexandrescu, «grita a impotência, os tormentos, os falhanços, a agonia e a morte de sua mulher, Nina Mares, [tal como] a agonia e a morte do seu povo.» (…) «É o ‘Apocalipse de Eliade’, ‘O Apocalipse segundo Eliade’». Em suma, constitui um testemunho da «integração em si do luto, tal como Heidegger e depois Vattimo o definiram.» Mircea Eliade «não ultrapassa a crise no sentido de a esquecer, a enterrar, a abandonar ‘aos anos mortos’ portugueses, mas no sentido de aprender a viver com ela, a assimilar internamente o luto, não porque o acabou, mas sim porque, por decência [por pudor?], já não o mostra. À sua maneira, nunca se esqueceu nem de Nina, nem da Roménia posta de joelhos pelo comunismo.»

Esqueçamos a «Roménia posta de joelhos pelo comunismo», porque de joelhos estava a Roménia desde há muito – e com os comunistas neutralizados nos cárceres. Deixemos o megalómano que se assumia como detentor de horizontes culturais «muito mais vastos que os de Goethe». Ignoremos que considerava Alfredo Pimenta «o homem mais sábio de Portugal». Ocultemos, por caridade, os dislates que veicula sobre Gomes da Costa, Carmona ou Salazar. Fixemo-nos no intelectual leitor do Eclesiastes, de Kierkegaard, de Unamuno, de Julien Green. No místico pensador da vida «post mortem». No amador que perde a bem-amada. Ainda não fez 40 anos, está em Lisboa nos finais da Segunda Guerra Mundial, copia uma frase de Heloisa a Abelardo: «Faz de mim o que quiseres, mas não me esqueças.» E diz, de si para si: «No fundo, é isso que é grandioso num casamento conseguido: ter uma testemunha da tua vida passada, mais precisamente dos grandes momentos, das várias tensões e das revelações desta vida, a esposa é portadora do mesmo segredo que tu…» (…) «Eu e a Nina estamos ligados mais do que pelo nosso amor e pela nossa amizade; estamos ligados pela história que vivemos ou fizemos juntos.»

Deixa escapar um gemido: «A vida passada em comum não está perdida, se houver um ‘juntos’ que a refaça, que a amplifique, que a fertilize sem parar. Esse ‘juntos’ está agora perdido para mim. Tudo o que havia de mais íntimo, mais agradável, mais dramático – toda a nossa ‘história’ essencial – ficou apenas comigo. Já não a posso evocar, porque ela só faria sentido para nós dois e apenas para nós dois. Por isso, é provável que a minha solidão já não vá conseguir consolar-se através de criações literárias, mas apenas pela filosofia e pela teologia. Já não tenho para quem recordar os pormenores.» Relê Job, Isaías, as Epístolas de São Paulo. Delira: «Poderei abolir o passado, ganhando um presente de beatitude e vida eterna.» Reencontra Chestov: «Temos de nos livrar do passado, temos de transformar o que foi naquilo que nunca foi.» Volta a delirar: «Sempre que posso, rezo – e tenho fé. Acredito com toda a força do meu ser que vou reencontrar a Nina, que o nosso amor vai recomeçar, que os nossos corpos vão ressuscitar um dia, em glória.» Parte para Fátima, qual ingénuo peregrino. Assim foi o seu Apocalipse: convívio com a Morte, reinvenção da Vida.

Mircea Eliade, «Diário Português – 1941-1945», Guerra e Paz, 2008, 302 páginas