Drieu La Rochelle (Diário, 1939-1945)

Drieu, ou a intolerável proeza

António Rego Chaves

Múltiplas abordagens deste «Diário» de Pierre Drieu La Rochelle (1893-1945) serão possíveis: a política, a literária, a sexual, a psicológica, a sociológica, a metafísica, são apenas alguns exemplos das perspectivas a partir das quais tudo o que é individual pode ser encarado e entendido. Nenhuma delas, porém, esgota um ser humano: a esse, em toda a sua complexidade, apenas o podemos captar de perfil, sem sequer ficarmos certos de nos termos apercebido do que de facto ele foi ou teve de único.

A primeira descrição será a de carácter político (a Lógica ensina que os seres individuais não podem ser definidos, apenas nos é possível descrevê-los – e sempre por defeito, pois jamais saberemos «tudo» acerca deles). Quem era, pois, Drieu: um fascista, apenas um fascista, nada mais do que um fascista? Responderão alguns que sim – e arquivarão o inquérito. Pobre investigação, a que não for mais longe: pois não será necessário distingui-lo, enquanto «fascista», de todos aqueles a quem aplicamos idêntico rótulo?

Que o diferencia, então? Ter sido um antidemocrata, um «anti-semita», um colaboracionista durante a ocupação do seu país, a França, pelo invasor nazi? Ter sido o autor de algumas fascinantes obras literárias, como «Gilles», «La Comédie de Charleroi», «Le Feu follet»? Ter sido um «Dom Juan», misógino, sexualmente impotente? Ter sido um obcecado pela «eterna» juventude, pelas amizades «viris», pelo suicídio? Ter sido um pequeno-burguês pouco inclinado a ganhar o seu pão, extorquindo dinheiro a abastadas mulheres que o amaram e que nem sempre amou? Ter sido, nos últimos anos da sua vida, um devotado estudioso da Tradição Esotérica?

Amigo (talvez um tudo-nada mais do que isso), até 1925, do então surrealista e mais tarde comunista Louis Aragon, interlocutor privilegiado, até à morte, do tardio resistente ao ocupante nazi André Malraux, Drieu moveu-se, no entanto, em extrema solidão. Era um misantropo, se bem que sedento de aplausos dos seus contemporâneos. Se alguma coisa, no entanto, este «Diário», escrito entre 1939 e 1945, nos revela, é que estava longe de se sentir seguro de ter talento e, muito menos, génio. Incorrigível preguiçoso e egocêntrico, inclinava-se bem mais para «viver a sua vida» do que para construir obra que transcendesse o plano autobiográfico.

Narrava Dominique Desanti, num ensaio que intitulou «Pierre Drieu La Rochelle – Du dandy au nazi»: «Com um grupo de escritores franceses, assiste [em 1935] ao grande desfile dos SS em Nuremberga. Noite em que os homens marcham com passo cadenciado, empunhando tochas, formando uma cruz gamada luminosa, enquanto um tonitruante Wagner conduz os futuros carniceiros da Europa para o Walhalla. Foi aí que morreu simbolicamente o Drieu dândi. Declarou nunca ter experimentado emoção estética semelhante desde os Ballets Russes de Diaghilev, em 1912.» Nem foi preciso recorrer à insuperável «persuasão» de uma Léni Riefenstahl…

Drieu sairá derrotado ao apostar na França, até 1940, e na Alemanha, a partir da Ocupação. Tornara-se, aliás, num francês que desprezava os franceses e, depois, num europeu que desprezava os alemães. Desprezara os franceses porque o país real recusou a guerra que lhe era proposta pelo país legal. Desprezara os alemães porque o nacional-socialismo deles, depois da eliminação por Hitler da esquerda personificada por Ernst Röhm, líder das SA, se tornou cada vez mais nacionalista e cada vez menos socialista. Ora, em desespero de causa, o autor de «L’Europe contre les patries» (1931) e de «Socialisme fasciste» (1934) pretenderia «apenas» que o Velho Continente se unificasse sob a égide de uma «forte» Alemanha. Mais de seis decénios após a sua morte, terá sido completamente vencido?

Quanto a «levantar a mão sobre si próprio», para utilizar um título de Jean Améry, sempre terá encarado tal eventualidade como uma solução desejável para os graves problemas com que foi confrontado. Em última instância, fixara-se desde cedo o objectivo de pôr termo à vida cerca dos cinquenta anos. Desejava, acima de tudo, poupar-se a si e não dar a outros o degradante espectáculo da decrepitude física e mental. Viveu escondido, de casa em casa, desde o desembarque dos Aliados na Normandia, em 6 de Junho de 1944, até 15 de Março de 1945, data da sua terceira tentativa de suicídio e da sua morte. Fora então informado de que era procurado pelos vencedores, a cujo julgamento considerava uma ignomínia ser submetido.

As suas últimas frases ainda hoje deixarão perplexos muitos dos que as analisarem. Anunciava: «Mato-me: isso não é proibido por nenhuma lei superior, muito pelo contrário. A minha morte é um sacrifício livremente consentido que me evitará certas sujidades, certas fraquezas.» E, com o pudor de quem não se quer justificar perante «homenzinhos» que despreza, proclama: «Sim, sou um traidor. Sim, estive em inteligência com o inimigo. Levei a inteligência francesa ao inimigo. Não tenho culpa que esse inimigo não tenha sido inteligente… Não sou apenas um francês, sou um europeu. Também vós o sois, sem o saber ou sabendo-o. Mas nós jogámos, eu perdi. Reivindico a morte.» Deixava tudo claro: «Eu próprio já não creio senão no comunismo, mas não posso nem quero tornar-me comunista.» Não era só a (in)cultura dominante da sua classe social que o retinha, mas sobretudo o imperativo de não tornar viável qualquer suspeita de oportunismo político.

Resta uma ressalva importante, porventura definitiva, inultrapassável: nunca, ao longo de centenas páginas do «Diário», por vezes admiráveis (sobretudo quando fala de si próprio), nos é sequer mencionado um único crime nazi, tão-só um ou outro «erro político». Eis, decerto, uma arrojada proeza – mas, sem qualquer espécie de dúvida, uma intolerável proeza.

Pierre Drieu la Rochelle, «Journal/1939-1945», Gallimard, 1992, 521 páginas