Musil/Ensaios

Um homem diferente

António Rego Chaves

No começo dos anos vinte do século passado, escrevia Robert Musil nos seus «Diários» um esboço de ensaio, reproduzido neste volume, que pretendia chamar «Tentativas para encontrar um homem diferente» ou «O alemão como sintoma»: optou pelo segundo termo da alternativa. Ali esclarecia o que então o separava de outros «subversivos»: «Não esquecer os que querem também um homem diferente: os revolucionários. Por numerosas razões, devemos estar-lhes reconhecidos por termos o fogo sagrado; mas o homem novo deles não é senão o velho homem libertado.»

Na verdade, o autor de «O Homem sem Qualidades» situava-se numa outra «ilha» de rejeição do real, a de quem se sentia indivíduo à margem dos outros indivíduos, intelectual à margem dos outros intelectuais. Explicara que o título «Um Homem Diferente» poderia, mesmo, convir a toda a sua obra e evocara um seu ainda vivo «sentimento juvenil de que as noções dos velhos são ultrapassadas pelas realidades da vida». Concluíra: «O que pude ver dos escritos dos actuais jovens pareceu-me mais ornamentar variações sobre a maneira de pensar dos velhos do que corresponder às novas realidades. Sinto que vivo numa época eclética, subtil, não criadora.»

Que entenderia Musil por um «homem diferente», por uma «mulher diferente», por «um mundo outro», enfim? Os amantes exemplares de «O Homem sem Qualidades», Ulrich e Agathe, transplantados para lá do Império Austro-Húngaro, habitando um paradisíaco e mediterrânico sul, novíssimos e temerários Adão e Eva? Poderíamos crer que sim, embora o próprio autor estivesse ciente de que «o absoluto não pode ser mantido», ou seja, se nos atrevermos a interpretá-lo, que a sublime (re)união entre as suas míticas personagens «siamesas» não conseguiria resistir à duríssima prova da rotina quotidiana a que todos os humanos estão condenados.

Robert Musil tornou bem clara a sua tentativa de se «apropriar da irrealidade». Advertiu-nos: «Os leitores estão acostumados a que se lhes conte histórias da vida, e não do reflexo da vida na cabeça das pessoas. Mas isso é com certeza tão pouco justificado quanto esse reflexo é tudo menos um mero resumo pobre e convencional da vida. Eu tento oferecer-vos um original, e vós tereis também de suspender os vossos preconceitos.»

Será o amor de Ulrich e Agathe mais uma utopia condenada a não sair de um texto? Ou, como Musil sugeriu, poderíamos aspirar a ser personagens literárias vivas? Ouçamo-lo: «Uma utopia é mais ou menos o equivalente de uma possibilidade; o facto de uma possibilidade não ser uma realidade significa apenas que as circunstâncias com as quais a primeira está provisoriamente articulada a impedem de ser a segunda, porque de outra forma ela mais não seria do que uma impossibilidade. Se essa possibilidade for liberta das suas dependências e puder desenvolver-se, nasce a utopia.» Tudo, pois, em aberto. Aberto em que direcções, até que fronteiras entre o real e o possível? Não disse Proust que «a verdadeira vida, a vida enfim descoberta e entendida, a única vida realmente vivida, é a literatura»?

O autor, segundo revelou, tinha a ambição de transmitir «uma filosofia da vida». Em plena «idade técnica» e da «uniformidade», caberia à arte e à literatura, na qual sabia ocupar um lugar de destaque, cuidar do que a ciência e a filosofia oficiosa iam deixando para trás e interrogar o futuro. Não se julgava detentor de qualquer verdade única; com Nietzsche aprendera, desde muito jovem, que «há verdades, não uma verdade». Ao autor de «A Origem da Tragédia» fora buscar também a ideia de um «outro estado», miragem de uma poética simbiose da razão e do sentimento, de um «êxtase dionisíaco» com que se aparentava, de alguma forma, a persistente demanda do possível e da plenitude vivida por Ulrich e Agathe.

Sustentou Michel Foucault que a errância do Quixote se destinava a mostrar que «os livros falam verdade». Ulrich não vai tão longe: move-se num universo de ideias onde não vê moinhos de vento e nele se derrama, debate, detém; ao contrário do Quixote, não está seguro da sua missão, não encontra um rumo, não combate: estaca – e o tempo pára. Viver como espectador, ainda que interactivo, a história das ideias – em vez de viver a história de todos, a do mundo – será, mesmo, viver uma idade de homem?

Limitação de Musil? Talvez não. A limitação, se existe, é apenas nossa, que não somos alquimistas, mas homens e mulheres comuns, porque só acreditamos no «realmente real». Ou seja: perdemos – ou nunca a tivemos, sequer – a capacidade de nos maravilhar, de conhecer, de sonhar, em toda a sua extensão, o luminoso reino do possível. Conformamo-nos com o «realmente real», com a inércia, a vulgaridade, o ramerrão de um dia-a-dia insípido, burocrático, sem alma. O poeta que ousou conceber Ulrich e Agathe não abdica de desejar, não apenas o que nos parece possível, mas até o que imagina. E, como todos os grandes poetas, é também um mágico.

Musil não tinha grandes ilusões sobre o papel que lhe poderia caber na resposta às grandes interrogações gnosiológicas. Estava seguro, contudo, de que o pensamento artístico e o pensamento científico «ainda não tinham entrado em contacto» e que «os problemas da zona intermédia» esperavam, também, uma solução. Escreveu, num dos muitos curtos ensaios inseridos nesta colectânea: «A ciência procura a verdade, rege-se por ela e pelos factos; o andamento e unidade da obra científica estão inscritos no seu objectivo. Nas obras do espírito, tudo se passa de outra maneira. Elas têm qualquer coisa de inacabável e nunca têm, a bem dizer, uma finalidade acessível.» Não ignorava, porém, aonde sonharia chegar: «Articular o sentimento por meio do intelecto, desviar o intelecto dos problemas insignificantes do saber para os do sentimento, tal é a finalidade do ensaísta, tendo como finalidade mais longínqua a felicidade humana.»

Robert Musil, «Essais», Éditions du Seuil, 1984, 654 páginas