Jean Améry («Revuelta y resignación - Acerca del envejecer»)

«Humilhação sem par»

António Rego Chaves

Não será fácil ler este livro sem a cada momento sentirmos que ele nos diz respeito e, mesmo, nos é dirigido. A minuciosa análise que o autor faz dos problemas abordados, tão «distanciada» quanto possível por parte de quem os «vivia na pele», torna-se, por vezes, sufocante. Em cinco curtos ensaios – «Existência e decurso do tempo», «Converter-se em estranho para si próprio», «O olhar dos outros», «Não entender já o mundo» e «Viver com o morrer» – Jean Améry (1912-1978) encara de frente o envelhecimento, deixando-nos um texto que se pode considerar de referência sobre o tema.

Em 1968, quando escreve a obra, o filósofo austríaco conta apenas 55 anos, o que, na época, seria talvez tido como uma idade mais «avançada» do que hoje, mas não permitiria ainda lançar-lhe o brutal e feroz anátema de «estar prestes a ultrapassar o prazo de validade». Socorrendo-se de pensadores como Vladimir Jankélévitch, Herbert Plügge ou André Gorz, Jean Améry elabora uma meditação rigorosa, serena e acutilante sobre a senectude e a morte, mas confessará em 1977, um ano antes de se suicidar: «tudo era um pouco pior do que eu tinha previsto: o envelhecimento físico, o cultural, o avizinhar-se, percebido dia a dia com intensidade crescente», da morte…»

Jean Améry desfaz os mitos – as «tretas» – em voga acerca dos pretensos encantos da velhice. Se alguém diz que se sente bem é porque já não se encontra completamente bem, tal como quem afirma sentir-se jovem não pode ser verdadeiramente jovem: «Quem se ‘sente’, seja bem ou mal, não se acha em situação óptima, porque enquanto se encontra na plena posse das suas forças e vive na certeza de uma corporeidade sã, não se ‘sente’.» A verdade é esta: «o corpo torna-se cada vez mais massa e menos energia.»

Não há por onde escapar, a velhice é, com todas as letras, «uma doença», metamorfose sem remédio, mal incurável. Os seus «sintomas» vão desde as rugas no rosto e nas mãos, à perda de dentes, aos distúrbios do aparelho digestivo, aos cabelos sem brilho ou escassos, às costas curvadas, à flacidez, às pernas bambas, às unhas quebradiças, ao enfraquecimento do coração, à esclerose, às falhas de memória, à persistente angústia perante a chegada do fim – do «quando», do «onde» e do «como» do fim. Feitas as contas, teremos de concluir que «hoje estamos um pouco menos sãos do que estávamos ontem, e apenas um pouco mais do que estaremos amanhã.»

Talvez já não nos reconheçamos a nós próprios, e não saibamos se, não sendo agora o que fomos, somos o que o olhar dos outros vê em nós. A sentença da sociedade tornou-se inapelável: «és um velho». O que quase sempre significa: «és uma carga e um comensal inútil». Ou seja: «inábil, inepto para isto ou para aquilo, incapaz de aprender, infrutuoso, indesejado, insano» – para ti não existe o futuro, para ti «o futuro já se acabou».

É neste contexto, e limitados pela cultura adquirida durante os primeiros decénios da nossa vida («as peças fundamentais de cada sistema cultural individual formam-se na juventude, o que é consequência da curva de vitalidade e sensibilidade») que deixamos de entender o mundo: «Tal como o corpo ao envelhecer adquire cada vez mais massa e cada vez menos energia, o espírito, entendido aqui como receptor cultural, é cada vez mais lento e pesado, devido à sua própria natureza, e ao tempo, de forma que, presa de uma indolência crescente, já não se quer mover quando novos sinais o desafiam.» As consequências deste processo são trágicas: «O envelhecimento cultural, contra o qual não há remédio, como contra o declínio físico, é a mensagem totalmente negativa, o anúncio da morte.»

A morte, mas que morte? Pensar a morte, dizia Vladimir Jankélévitch, é «pensar o impensável». Jean Améry acrescenta: «A morte não é nada, é um nada, uma nulidade.» Pois, mas tudo isto, para a esmagadora maioria dos condenados à morte – estamos todos condenados à morte, será necessário sublinhá-lo? – não é mais do que um conjunto de palavras extemporâneo. Páginas adiante, explicita por que motivos: «Não é o mesmo temer a morte por enfarte, que no melhor dos casos destrói um ser humano em poucos minutos, ou por uma crise de uremia, que dura algumas semanas. E muda também se um pobre diabo morre no hospital, só, sob o olhar indiferente da enfermeira, ou quando um rico morre numa clínica de luxo.» (…) «É necessário insistir que, se é verdade que somos todos iguais perante a morte – o que não significa praticamente nada, ou melhor, não faz senão aumentar a exigência de igualdade para a vergonhosa ausência de compromisso da metafísica – no entanto não somos todos iguais no morrer. ‘Com dinheiro, é mais fácil chorar’, diz um provérbio judeu oriental.»

Pode pensar-se que as reflexões ontológicas só depois da abordagem deste «morrer social» teriam inteira legitimidade para surgir. Jean Améry assim parecia crer. Citando Freud, para quem, «no subconsciente, cada um de nós se acha perfeitamente convencido da sua imortalidade», sugere que tal não se deve tanto a um «natural» aferrar-se à vida, quanto à impensabilidade da própria morte – e que, não obstante, esta convicção é frágil e vacilante, como o é a esperança de vida futura daqueles que se definem como crentes.

Moribundos que somos desde o primeiro momento de vida, a angústia da iminência da morte pode assaltar-nos a cada instante. «A angústia difusa, angústia última, enfim, chama-se morte», escreveu Jankélévitch. Mas havia também a morte voluntária, «livre, consciente, sem improvisações», como dissera Nietzsche. Em 1978, este resistente que sobrevivera a Auschwitz, imerso na desolada região do envelhecimento que habitava, decidiu não viver mais com o morrer, «humilhação sem par, que acolhemos não com humildade, mas como humilhados». E, de acordo com o que tinha vindo a insinuar, «levantou a mão sobre si próprio», «morrendo a sua morte».

Jean Améry, «Revuelta y Resignación – Acerca del envejecer», Pre-Textos, 2001/2011, 147 páginas