O execrável sub-homem (Wilhelm Reich)

António Rego Chaves

Ao relermos – desta vez em tradução portuguesa – «Listen, Little Man», de Wilhelm Reich (1897-1957), deparámos com várias tomadas de posição que nos remeteram para uma antiga recordação, a que conservávamos de «La Rebelión de las Masas», de Ortega y Gasset (1883-1955). Sendo a obra do espanhol datada de 1930, ao passo que a do austríaco seria publicada dezoito anos depois, ocorreu-nos cotejar uma com a outra. O resultado foi que, entre a apolínea serenidade de Ortega quando zurze o «homem-massa» e a dionisíaca exaltação de Reich ao invectivar o «pequeno homem», a distância nem sempre se nos revelou tão evidente e nítida quanto poderíamos pensar.

Comecemos por Ortega. Considerava que o homem-massa «só tem apetites, crê que só tem direitos e não crê que tem obrigações: é o homem sem a nobreza que obriga – ‘sine nobilitate’ – ‘snob’». E sustentava que mesmo o demagogo é «homem-massa», um homem-massa «irresponsável perante as próprias ideias que maneja e que ele não criou, antes recebeu dos verdadeiros criadores». O seu elitismo intelectual radicava em afirmações como as seguintes: «A sociedade é sempre uma unidade dinâmica de dois factores: minorias e massas. As minorias são indivíduos ou grupos de indivíduos especialmente qualificados. A massa é o conjunto de pessoas não especialmente qualificadas.» (…) «Hoje assistimos ao triunfo de uma hiperdemocracia em que a massa actua directamente, sem lei, por meio de pressões materiais, impondo as suas aspirações e os seus gostos.» (…) «Antes a massa presumia que, ao fim e ao cabo, com todos os seu defeitos e vícios, as minorias dos políticos entendiam um pouco mais dos problemas públicos do que ela. Agora, pelo contrário, a massa julga que tem o direito de impor e dar força de lei aos seus tópicos de café.» (…) «O que é característico deste momento é que a alma vulgar, sabendo-se vulgar, tem a ousadia de afirmar o direito da vulgaridade e o impõe onde quer que seja.»

Passemos a Reich. O polémico iniciador do freudo-marxismo – celebrizado por obras como «A Função do Orgasmo» (1927), «Análise do Carácter» e «Psicologia de Massas do Fascismo» (ambas de 1933) – era, na altura em que redigiu este ensaio, um homem acossado, devido à sua heterodoxia no domínio da psicanálise e, também, em consequência das suas opções políticas radicais. Exilado nos EUA, excluído do Partido Comunista Alemão e da International Psychoanalytical Association, difamado por adversários, tratado como esquizofrénico pela comunidade freudiana, reduzido ao estatuto de desprezível charlatão pelos meios psiquiátricos, tornou-se num ser conturbado, ainda que provido de um fulgor intelectual que só se extinguiria com a sua morte, vítima de ataque cardíaco, numa penitenciária da Pensilvânia. Meses antes de falecer, escreveria, da prisão, a seu filho: «Orgulho-me de estar em tão boa companhia, com Sócrates, Cristo, Bruno, Galileu, Moisés, Savonarola, Gandhi, Nehru, Mindszenty, Lutero e todos os que combateram contra o demónio da ignorância, os decretos ilegítimos e as chagas sociais… Tu aprendeste a ter esperança em Deus assim como nós compreendemos a existência e o reino universais da Vida e do Amor.»

Afirma Reich, apresentando este seu «documento humano», que ele «resultou da luta interior de um cientista e médico que, durante décadas, passou pela experiência, a princípio ingénua, depois cheia de espanto e, finalmente, de horror, do que o homem comum é capaz de fazer de si próprio, de como sofre e se revolta, das honras que tributa aos seus inimigos e do modo como assassina os seus amigos.» Este pequeno homem, homem médio ou homem comum – duvidamos que o substantivo «zé-ninguém», que designa uma «pessoa pouco importante ou de fracos recursos económicos», possa traduzir com rigor o pensamento do autor, pois, para ele, existiam «zés-ninguéns» muito «importantes» e com fortes recursos económicos – este pequeno homem, homem médio ou homem comum, dizíamos, é aquele que se manifesta incapaz de agarrar o que lhe pertence, o que conquistou «nas sangrentas barricadas de Paris e Viena, na luta pela independência Americana ou na revolução russa. Paris foi dar a Pétain e Laval, Viena a Hitler, a Rússia a Estaline, e a América bem poderia conduzir a um regime KKK – Ku Klux Klan». O pequeno homem escraviza-se a si próprio, é o seu próprio negreiro. Conhece «Hitler melhor que Nietzsche, Napoleão melhor que Pestalozzi», um rei tem mais importância para ele do que um Freud. Implacável, Wilhelm Reich interpela o «homo normalis» nos seguintes termos: «Terás de entender que és tu quem transforma homens medíocres em opressores e transforma em mártires os verdadeiramente grandes; que os crucificas, os assassinas e os deixas morrer de fome; que não te ralas absolutamente nada com os seus esforços e as lutas que travam em teu nome; que não fazes a menor ideia de quanto lhes deves do pouco de satisfação e de plenitude de que gozas na vida.» (…) «Tens medo de altos voos, medo da altura e da profundidade. Nietzsche já te disse isto muito melhor, há muitos anos já. Só que não te disse por que és assim. Tentou transformar-te num super-homem, num ‘Übermensch’ que superasse o que tens de humano. O ‘Übermensch’ tornou-se ‘Führer Hitler’. Tu permaneceste ‘Untermensch’ [sub-homem]» (sic, e não ‘Übermensch’, como se escreve nesta descuidada reedição, a páginas 25 e 49).

Julián Marías, discípulo e grande especialista de Ortega, sustentou que o seu mestre não sentia qualquer hostilidade em relação às massas, mas apenas a esse inabilitado «homem-massa» que se comporta como se pertencesse de direito a uma minoria dirigente. Cremos que Reich, porque freudo-marxista, visou mais longe: o que quis, um tanto à maneira do Zaratustra de Nietzsche, foi ajudar a extirpar o que há de medíocre, de mesquinho e de sórdido no pequeno homem, homem médio ou homem comum. Mas não desejou transformá-lo em super-homem – apenas num homem digno desse nome e capaz de, vencendo o que de desprezível em si habita, se vencer a si próprio, orientando a sua existência para a criação de um mundo menos desumano.

Wilhelm Reich, «Escuta, Zé Ninguém!», Leya, 2008, 95 páginas