Martin Heidegger («Caminhos de Floresta»)

Caminhos que não levam à miragem de uma Ítaca

Portugueses arriscaram-se a traduzir «Holzwege», de Martin Heidegger. Finalmente…

António Rego Chaves

Uma vez mais, a Fundação Gulbenkian volta a surpreender-nos agradavelmente com a publicação de um clássico da História da Filosofia. Depois de nos ter oferecido as Cartas a Lucílio, A Cidade de Deus ou a Crítica da Razão Pura, eis-nos perante essa obra mágica de Martin Heidegger que o autor intitulou Holzwege.

Podemo-nos desde logo interrogar acerca dos motivos que levaram os responsáveis pela edição a não optar, em primeiro lugar, por Sein und Zeit – Ser e Tempo –, um dos textos incontornáveis surgidos no século XX. A questão talvez seja demasiado complexa, mas não há dúvida que os «aprendizes de filósofo» de todas as idades existentes em Portugal mereciam, desde há muito, a dita de ler na sua língua uma tradução que, contrariando a publicada no Brasil, assinada por Márcia de Sá Cavalcante, não tivesse «legislado» que Dasein se pode e deve traduzir por «pre-sença». Aliás, esta edição de Holzwege, ao transmitir-nos a tradução daquele termo fulcral da filosofia heideggeriana, afasta-se do já clássico ser-ahí de José Gaos e da equivalente terminologia francesa être-là, para adoptar um bizantino «aí-ser». Com que proveito?

Seja como for, aí temos – finalmente – Holzwege traduzido por portugueses. Caminhos de Floresta, que quer isso dizer? O autor explica, logo no exórdio:

«Holz [madeira, lenha] é um nome antigo para Wald [floresta]. Na floresta [Holz] há caminhos que, o mais das vezes sinuosos, terminam perdendo-se, subitamente, no não trilhado.

Chamam-se caminhos de floresta [Holzwege].

Cada um segue separado, mas na mesma floresta [Wald]. Parece, muitas vezes, que um é igual ao outro. Porém, apenas parece ser assim.

Lenhadores e guardas-florestais conhecem os caminhos. Sabem o que significa estar metido num caminho de floresta.»

Os que leram a tradução francesa de Holzwege, assinada por Wolfgang Brokmeier, não esqueceram, sem dúvida, por que motivo ela se intitula Chemins qui ne mènent nulle part. A razão é simples, e parece de algum peso: lenhadores e guardas florestais sabem que estar num Holzweg significa, sem equívocos, trilhar um caminho que não conduz a parte nenhuma. A ideia, em alemão, é, pois, esta: a de «caminho perdido» e «pouco seguro», a de «meter-se por atalhos». Será que o título da edição portuguesa – uma «versão literal» – transmitirá ao nosso leitor rigorosamente o mesmo que Holzwege ao leitor alemão?

Entremos, então, pé ante pé, nestes textos maiores do século XX. Os seus seis temas (A origem da obra de arte, O tempo da imagem do mundo, O conceito de experiência em Hegel, A palavra de Nietzsche «Deus morreu», Para quê poetas e O dito de Anaximandro) são igualmente fascinantes, tratados com luminosa profundidade e, como talvez não pudesse deixar de ser, por vezes de difícil decifração. É muito o que se exige do leitor – como talvez tenha sido ainda mais o que o autor exigiu de si mesmo e dos seus eventuais futuros tradutores.

Se algum destes «caminhos» tivesse que recomendar em especial a quem estiver disposto a «perder» meia dúzia de horas ou de dias do seu precioso tempo, decerto escolheria Para quê poetas, uma conferência proferida por Martin Heidegger por ocasião do 20.º aniversário da morte de Rainer Maria Rilke (falecido a 29 de Dezembro de 1926). É muito difícil classificar o texto como filosófico ou poético, porque a palavra do autor de algum modo supera os dois planos, ao mesmo tempo que nunca deixa de os conservar a ambos no discurso.

Ultrapasse o leitor a discutível tradução adoptada para uma frase da elegia Pão e Vinho, de Friedrich Hölderlin, e ser-lhe-á oferecida, em todo o seu esplendor, a magia de Martin Heidegger. Foi Paulo Quintela quem nos começou por dar o exemplo e nos transmitiu a pergunta do autor de Hyperion («wozu Dichter in dürftiger Zeit?») como «para quê poetas em tempos indigentes?». Outros tradutores portugueses acompanharam o mestre de Coimbra, mesmo quando preferiram escrever «tempo de indigência» ou «tempos de indigência». Em França, seguiu-se outras vias: perguntou-se, por exemplo, «pourquoi des poètes en temps de détresse?». Ora «détresse» exprime algo mais do que indigência, apela para as ideias de pobreza, privação, miséria, sem dúvida, mas também para as de abandono espiritual, profunda solidão, perturbação moral. Dito isto, há que procurar mergulhar nestas meditações do filósofo e poeta Martin Heidegger, compreendendo por que motivo, «no tempo da noite do mundo, o poeta diz o sagrado». E, mais ainda, que «apenas os poetas, que pertencem à índole dos que arriscam mais, caminham no rasto do sagrado, pois experienciam a incúria como tal».

Estes «caminhos de floresta» talvez não levem a parte nenhuma. Mas valerão sempre a pena, só por si, apenas pela viagem em que a miragem de Ítaca não é mais do que um pretexto para a tanto quanto possível interminável odisseia do audacioso Ulisses.

Martin Heidegger, «Caminhos de Floresta», Fundação Calouste Gulbenkian, 2002, 453 páginas

Publicado no «Diário de Notícias» em 30.04.2010