Antero: entre sentir e pensar

Era psicótico. Pena não termos visto muitos «doentes» ou não «doentes» capazes de tão altos voos sobre Portugal terrestre...

António Rego Chaves

Foi «um santo que era um génio» (Eça de Queiroz). Líder revolucionário dos universitários de Coimbra, jurista, apóstolo da modernidade cultural europeia contra o «provincianismo» de Castilho, poeta de Ideias, tipógrafo em Paris, socialista militante, polemista, seguidor de Schopenhauer e do budismo, «teólogo e não romântico», filósofo em causa própria, presidente da Junta Patriótica do Norte após o ultimato inglês, porá termo à vida, com dois tiros de revólver, em 1891, na cidade de Ponta Delgada, onde nascera em 1842. Chamava-se Antero Tarquínio de Quental e, segundo o psiquiatra Miller Guerra, sofreu de «psicose maníaco-depressiva». Pena não termos visto muitos «doentes» ou não «doentes» capazes de tão altos voos sobre Portugal terrestre…

Adiante: anterianistas não nos faltam. É costume citar, à cabeça, António Sérgio, Leonardo Coimbra, Joaquim de Carvalho. Joel Serrão, que organiza, introduz e anota com rigor e mestria esta edição da «Filosofia» de Antero de Quental, recolhe dez textos: Na Sentida Morte do meu Condiscípulo e Amigo Martinho José Raposo, A Bíblia da Humanidade de Michelet, O Sentimento da Imortalidade, Arte e Verdade, Espontaneidade, O Futuro da Música, Programa para os Trabalhos da Geração Nova, Ensaio sobre as Bases Filosóficas da Moral ou Filosofia da Liberdade, A Filosofia da Natureza dos Naturalistas e Tendências Gerais da Filosofia na Segunda Metade do Século XIX. Este último, publicado em 1890, é geralmente considerado o mais importante depositado pelo autor na coutada privativa dos «amigos da sabedoria», ao passo que o segundo e o terceiro foram editados pela primeira vez em 1865, quando Antero contava apenas 23 anos. E, no entanto, quase nos atreveríamos a aventar que o essencial ficou dito desde então, limitando-se a derradeira obra a trilhar com maior segurança um daqueles caminhos irrecusáveis que, como recordaria Heidegger, não levam a parte nenhuma mas que são essenciais para quem se interroga sobre o sentido da existência.

Vamos por partes. Em primeiro lugar, uma questão bizantina: «será que Antero – que «pensa o que sente e que sente o que pensa», como proclamou Oliveira Martins – foi filósofo? Sem ironia: será que foram filósofos Pascal, Nietzsche, Kierkegaard, Unamuno? Ou teremos de reservar tal título nobiliárquico a Aristóteles, São Tomás, Kant, Hegel? Enfim, coisas para a casta de sumidades que discutiu o sexo dos anjos…

A seguir, o importante, aquilo que o suicida escrevia, apenas com 23 anos: «Dentro do homem existe um Deus desconhecido: não sei qual, mas existe – dizia Sócrates soletrando com os olhos da razão, à luz serena do céu da Grécia, o problema do destino humano. E Cristo com os olhos da fé lia no horizonte anuveado das visões do profeta esta outra palavra de consolação – dentro do homem está o reino dos céus.» (…) «Este vulto imenso, a que ainda chamam Deus, é apenas a sombra do ideal humano, que acha o mundo estreito e se alarga pelo espaço. Concebe o absoluto nos limites da sua relatividade.» Convenhamos, com o jovem Antero: não há muitos «filósofos que indagam», capazes de chegar tão longe quanto «os tristes que choram». Filósofos capazes de nos deixarem algo assim, como ele deixou: «Se um bom silogismo vale muito, uma lágrima bem quente, bem viva e bem sentida, deve valer tanto – ou mais ainda.» E depois lá vem a indisfarçável miragem, a de sempre, desde que o homem é um ser que sofre e raciocina: «Sonha-nos a alma uma compensação para as dores do mundo; pressente, para além do céu visível, um outro que não vê, mas cujas glórias adivinha o coração – o céu da Imortalidade.» Como exclamou João de Deus: «Ah! Não se é pó depois de tanta mágoa!»

Os anos passam, o poeta-filósofo estuda, medita, cria. À beira do fim, eis então as Tendências Gerais da Filosofia na Segunda Metade do Século XIX. Preocupam-no os antigos gregos, os escolásticos medievais, os renascentistas, Descartes, Leibniz, Bacon, Espinosa, Galileu, Kepler, Newton, Copérnico, Diderot, Lessing, Vico, Turgot, Condorcet, Herder, Goethe, Schiller, Rousseau, Voltaire, Kant, Fichte, Schelling, Hegel, Hartmann, Proudhon, Michelet, Comte, Spencer, Stuart Mill. «Emenda» Kant – mas não no melhor sentido –, proclamando que o verdadeiro númeno, a «coisa-em-si», queira a Crítica da Razão Pura ou não queira, é o espírito – e transforma o idealismo transcendental em realismo transcendental. Passe a «heresia» de tique hegeliano, a intenção era louvável: construir uma síntese – ou um sincretismo – onde coubessem criticismo, idealismo alemão pós-kantiano, positivismo, espiritualismo.

E tudo para, num golpe de asa, chegar aonde queria chegar: «Só quem, dissolvendo a própria vontade na vontade absoluta e identificando-se com ela, renuncia ao eu limitado e a tudo quanto é dele – o seu egoísmo, as suas paixões, o seu erro profundo e a sua inenarrável miséria – só esse alcançou a vida eterna.» A jornada do «professor de ideal», do místico, do «monge cristão», do budista, tinha sido longa, mas o jovem de 1865 nunca seria um «vencido da vida»: o tempo transformara-o em «Santo Antero».

Antero de Quental, «Filosofia», Editorial Comunicação, 1991, 274 páginas

Publicado no «Diário de Notícias» em 4.7.2002