Boécio («Consolação da Filosofia»)

No «corredor da morte»

António Rego Chaves

Narra o frade dominicano Jacopo de Varazze (mais conhecido entre nós por Jacques de Voragine), que Anicio Torquato Severino Boécio (480-524) foi defensor da autoridade do Senado contra o cristão ariano Teodorico, rei dos godos. Lembra também o autor da «Lenda Dourada» (século XIII) que o monarca fez exilar o filósofo em Pavia. No «corredor da morte», perdoe-se o anacronismo, redigiria Boécio o texto da «Consolação da Filosofia», após o que foi barbaramente executado. Acrescenta Jacopo de Varazze: «Sua mulher, Elpes, compôs, segundo se diz, o hino aos apóstolos Pedro e Paulo que começa assim: ‘Feliz festa para os dois únicos suportes do mundo.’»

Era um homem notável, este senador de Roma cuja mais importante missão cultural parece ter sido a de transmitir à Idade Média, até ao século XIII, quase tudo o que ela viria a conhecer e debater acerca da filosofia grega e helenístico-romana. Durante centenas de anos, foi por meio das suas traduções e comentários que o Ocidente procurou conciliar o que a muitos parecia (e parece) inconciliável, o cristianismo e a cultura clássica. A tarefa seria para gigantes, e nem mesmo Santo Agostinho a conseguira levar a cabo – tal como sucederia, oito séculos depois, com São Tomás de Aquino.

Nas palavras do humanista italiano Lorenzo Valla, Boécio foi «o último dos romanos e o primeiro dos escolásticos». Étienne Gilson, um dos mais reputados especialistas de filosofia medieval do século XX, sublinhou que «a primeira intenção de Boécio foi traduzir todos os tratados de Aristóteles e todos os diálogos de Platão e demonstrar o acordo fundamental entre as duas doutrinas». Gorada a última parte do projecto, como seria de prever, viria a legar-nos, no entanto, «um conjunto de ideias bastante coerente e suficientemente rico para que tenha chegado ao seu destino o essencial da mensagem que pretendeu transmitir». Certo é que alguns dos vocábulos filosóficos que então divulgou e definiu, como «Eternidade», «Pessoa» e «Essência», alcançariam durante toda a Idade Média uma importância decisiva na abordagem de questões da Metafísica, da Teologia e da Lógica.

«Consolação da Filosofia», a sua obra mais conhecida, converteu-se, como salienta Pedro Rodríguez Santidrián, um dos muitos eruditos espanhóis que a traduziu para castelhano, em «livro de cabeceira não só de escolásticos e de monges, como de príncipes, de poetas e literatos. Tornou-se num livro de meditação e inspiração ao lado da Bíblia, de Séneca, de Marco Aurélio e poucos mais». Para Tomás Morus, por exemplo, «a ‘Consolação’ serviu-lhe de almofada durante o mais de ano e meio que durou a sua reclusão na Torre de Londres». O autor da «Utopia», recorde-se, também não escaparia a um despotismo real, vindo a ser decapitado por ordem de Henrique VIII.

Luís Manuel Gaspar Cerqueira, responsável pela tradução, introdução e notas da presente edição, releva «a dimensão simultaneamente existencial e intemporal» do texto, anotando também o facto de nos encontrarmos perante «uma literatura conhecida de cor, com o coração, pois na cadeia Boécio não tinha a sua biblioteca». Conclui ainda que o pensador não visava «enquadrar e aliviar o desgosto provocado pela morte de alguém amado», mas compreender «o sentido da vida e da fundamentação ética». Razão de sobra para este livro ser tido por «intemporal», pois o seu ponto de partida, a meditação sobre as «coisas divinas e humanas», é de sempre.

Testamento político, moral e espiritual, obra literária e filosófica redigida sob a espada de Dâmocles, a «Consolação» nunca alude a autores cristãos, nem mesmo à Bíblia. Em página alguma são referidos o nome e o exemplo de Jesus, mas abundam os textos e as referências a filósofos e escritores latinos e gregos. Hoje talvez chamássemos a este texto «Consolação da Teologia»: o sage raciocina na qualidade de cristão, mas heterodoxo, pois crê na pré-existência da alma e perfilha a teoria platónica da reminiscência.

A questão do mal atormenta Boécio. Não encara apenas o seu infortúnio, ter sido vítima de injustiça, estar encarcerado, o seu martírio iminente: tenta entender que, «embora havendo um bom governante do mundo», Deus, «os males possam sequer existir ou que escapem impunes». E interroga: «Porquê o mal?», «Por que motivo ficam tantas vezes sem castigo aqueles que o praticam?», «Porque não é sempre recompensada a virtude?» O filósofo, o crente, procura uma resposta racional: «Sendo Deus um ser infinitamente bom e justo, como é possível este mundo de injustiças?»

As soluções dos teólogos são conhecidas e Boécio insere-se nessa piedosa tradição que tenta apaziguar os cristãos com a expectativa da imortalidade da alma e da ressurreição da carne. Persiste, porém, o equacionamento vivido do escândalo da morte, para muitos não um mal relativo entre outros males, mas o mal absoluto – e os filósofos pouco os poderão ajudar a conformar-se perante o que observam à sua volta e aquilo que os espera.

O absurdo de nascer, crescer, sofrer, envelhecer e morrer, assumido por tantos crentes sem aparente revolta e explicado pela «ordem natural das coisas», levou Albert Camus a sustentar n’ «O Mito de Sísifo», com os olhos postos no Kirilov d’ «Os Possessos» de Dostoievski, que «só existe um problema filosófico verdadeiramente sério – o suicídio.» E juntava: «Julgar se a vida merece ou não ser vivida, é responder a uma questão central da filosofia. O resto, se o mundo tem três dimensões, se o espírito tem nove ou dez categorias, vem depois. São apenas jogos; primeiro é necessário responder.» O teólogo Boécio não poderia ter sido tão radical, pois «o contrário do suicidado é o condenado à morte». Aliás, não deverá todo o cristão considerar-se desde o nascimento no «corredor da morte», porque a ela condenado pelo omnipotente criador que denomina «Deus»?

Boécio, «Consolação da Filosofia», Fundação Calouste Gulbenkian, 2011, 201 páginas