Giambattista Vico, um pensador fora do seu tempo

António Rego Chaves

A «Ciência Nova», do napolitano Giambattista Vico (1668-1744), constitui, no entender de R. G. Collingwood (1889-1943), uma cabal demonstração de que o seu autor se encontrava tão adiantado em relação aos contemporâneos que as suas ideias estavam votadas a não ter qualquer influência imediata em todo o mundo. Escreve o filósofo inglês: «O mérito extraordinário da sua obra não foi reconhecido antes que – duas gerações mais tarde – o pensamento alemão atingisse, por seu lado, um ponto muito semelhante, graças ao grande florescimento dos estudos históricos que teve lugar na Alemanha nos fins do século XVIII. Quando tal aconteceu, os estudiosos alemães redescobriram Vico e atribuíram-lhe grande valor, exemplificando assim a sua teoria, segundo a qual as ideias não se propagam por ‘difusão’, como artigos de comércio, mas pela descoberta, feita independentemente por cada nação, daquilo de que esta tem necessidade em determinado estádio do seu desenvolvimento.»

Publicada pela primeira vez em 1725 e reelaborada em 1730 e 1744, a obra principal de Vico define-se como frontalmente anticartesiana e antecipa temas essenciais do Romantismo – por oposição ao Iluminismo –, um dos quais será a especificidade do conhecimento histórico. Seu objectivo primordial foi, como acentua o autor no final do Livro V deste monumental edifício de mais de oito centenas de páginas, erigir uma «história ideal das leis eternas, sobre as quais transcorrem os factos de todas as nações, nos seus surgimentos, progressos estados, decadências e fins». Mais tarde, Hegel (1770-1831) substituirá a historicidade iluminista, entendida como negação e crítica da tradição, pela historicidade romântica, concebida como conservação e renovação de um património espiritual eurocêntrico.

Sintetiza o Padre Manuel Antunes, a propósito da «Ciência Nova», agora finalmente editada entre nós por iniciativa da Fundação Gulbenkian, como já vem sendo hábito em relação a textos filosóficos imprescindíveis: «Segundo o próprio Vico, numa visão que a crítica actual confirma, quatro foram os autores que sobre ele maior influência exerceram: Platão, Tácito, Bacon e Grócio. De Platão recebeu o sentido da filosofia e da verdade; de Tácito, o sentido da filosofia e da certeza; de Bacon, a vontade de combinação da certeza e da verdade; de Grócio, a intenção de traduzir uma e outra nas instituições e na prática dos homens.» Acrescentemos que, tal como Francis Bacon (1561-1626) formulara os princípios do método científico no «mundo da natureza», Vico pretendeu estabelecer os princípios do método científico no «mundo humano». A grande novidade foi, pois, ter o filósofo napolitano sustentado que a criação da sociedade humana e todos os pormenores desta criação podiam ser objecto de um conhecimento tão digno de fé como os resultados que Descartes (1596-1650) atribuíra à investigação matemática e física. Não era pequena a sua ousadia, numa época em que ainda imperava o conceito de verdade imposto pelo autor do «Discurso de Método» e pelos seus continuadores, que reduziam o critério da certeza válida à necessidade da razão geométrica. Vico opor-lhes-á a noção de verosímil, considerando que existem certezas humanas fundamentais que não são evidentes nem podem ser demonstradas, mas que na maior parte dos casos são tão verdadeiras como as da geometria. Assim surge a filosofia da história como disciplina independente no pensamento moderno, cuja certidão de nascimento é precisamente esta obra que o seu autor intitulou «Princípios de Ciência Nova acerca da natureza comum das nações». Jules Michelet (1798-1874) interpretará: «As nações mais longínquas no tempo e no espaço seguem nas revoluções políticas e nas da linguagem uma marcha singularmente análoga. Separar os fenómenos regulares dos acidentes, e determinar as leis gerais que regem os primeiros; traçar a história universal, eterna, que se produz no tempo sob a forma das histórias particulares, descrever o círculo ideal no qual é o mundo real: eis aqui o objecto da nova ciência. Ela é, a um tempo, a filosofia e a história da humanidade.» «Pormenor» não negligenciável salientado pelo filósofo argentino León Dujovne: na concepção de Vico, «a primeira literatura foi poesia e a primeira filosofia foi mitologia. Para ele, poesia e mitologia foram as etapas iniciais do pensamento, e o pensamento abstracto é um desenvolvimento a partir da poesia e da mitologia. Desta concepção deriva uma noção corrente na nossa época: que uma mesma ideia pode ser expressa como mito, como poesia e como metafísica.»

Na sua obra de referência que é «A Crise da Consciência Europeia», conclui, de forma magistral, Paul Hazard: «Pobre e grande Vico! Não o compreendiam, mal o ouviam; as suas ideias eram novas de mais, demasiado diferentes das que eram aprovadas à sua volta. Os outros louvavam o abstracto, o racional, envergonhavam-se de um passado que parecia uma mancha na sua civilização progressiva, consideravam a história como uma mentira e a poesia como um artifício, banindo a sensibilidade, esse doente, e a imaginação, essa doida. Mas ele, com a teimosia do génio, recusava-se a considerar o imenso corpo da humanidade como uma peça anatómica e cismava em reencontrar a palpitação da vida. Com o auxílio da jurisprudência, da filologia, das imagens, dos símbolos e das fábulas, e tornando-se pouco a pouco familiar com o passado, ia até ao fundo dos abismos milenários, para descobrir ao mesmo tempo a história da nossa evolução e a forma ideal do nosso espírito. Não aceitavam o ramo de ouro que ele trazia; por isso podemos ainda ouvir na Scienza Nuova o grito de uma alma indignada. A paixão tenta levantar frases demasiado carregadas de pensamento para poderem desferir voo à vontade; e Vico, sôfrego de provar tudo ao mesmo tempo, receoso de não ter dito o bastante, apressado, ofegante e pesado, oferece aos contemporâneos a obra grandiosa que os deixa indiferentes. Serão precisos três quartos de século para que este livro admirável projecte, enfim, o seu fulgor sobre o horizonte da Europa.»

Giambattista Vico, «Ciência Nova», Fundação Calouste Gulbenkian, 2005, 853 páginas