Os escritores e a melancolia («Le Magazine Littéraire»)

António Rego Chaves

Nós, portugueses, aprendemos a associar a melancolia ao rei D. Duarte que, no «Leal Conselheiro», lidos e relidos Cícero, Séneca e Aristóteles, S. Paulo, S. Gregório e S. Tomás, estudados os livros de S. João Cassiano, as «Colações dos Santos Padres» e os «Estabelecimentos dos Mosteiros», se transformou no «primeiro filósofo da saudade» (Rodrigues Lapa). O mais perene que nos legou não foi, porém, colhido na aturada investigação dos alfarrábios, mas o relato de um saber de experiência feito na qualidade de paciente de uma crónica «doença» a que chamou «humor merencórico». «Doença», mas será lícito falar de «doença» para designar essa visceral inaptidão de se adaptar às desprezíveis «voltas do mundo» que, mesmo detectadas de longe e de cima, a voo de pássaro, enquanto membro da realeza, mas dissecadas depois à lupa pelo «esmiuçador de tristezas» interiores que sempre foi, não paravam de o inquietar, de o angustiar, mesmo de lhe provocar náuseas, a ele que tanto prezava a lealdade e tanto execrava as grandes e as pequenas traições, fossem elas pessoais, sociais ou políticas?

É claro que o número especial do «Magazine Littéraire» consagrado ao tema «Os escritores e a melancolia – mal de viver, spleen e depressão desde Homero a Philip Roth» não consagra uma única linha ao misantrópico rei que cognominámos «O Eloquente», mas faz justiça a Jean-Paul Sartre, Virginia Woolf, Francis Scott Fitzgerald, V. S. Naipaul, Philip Roth, Natsume Soseki ou William Styron, relegando para um plano cultural terceiro-mundista – isto é, mencionando-o de passagem, qual intruso indígena ibérico – o Fernando Pessoa de «O Livro do Desassossego». Quanto a Antero de Quental, Raul Brandão ou Manuel Laranjeira – népia. Estes eminentes luso-melancólicos, tal como o rei D. Duarte, ainda parecem aguardar um lugarzinho de favor na retaguarda do avião para Orly, reservada aos candidatos a metecos…

Ultrapassada a mesquinha arrogância gaulesa, comecemos pelo fim: William Styron. O conhecido autor de «O Mundo de Sofia» ter-nos-á oferecido, em «Darkness Visible», «uma descrição por vezes infinitamente superior ao que dizem sobre a depressão os tratados de psiquiatria» (a opinião é Bernard Granger, catedrático desta ciência). Tal como Scott Fitzgerald, que em «The Crack-Up» («A Fenda Aberta», na tradução de Aníbal Fernandes), ao arriscar-se a escrever sobre a única coisa acerca da qual ainda podia escrever, que era o facto de já não poder escrever, revela que, «numa noite de alma verdadeiramente negra, são sempre, dia após dia, três horas da manhã», William Styron conheceu a depressão, o alcoolismo e a vertigem do suicídio. Contudo, nenhum deles foi tão longe no caminho da autodestruição como Essenine, Maiakovski, Virgínia Woolf, Romain Gary, Ernest Hemingway, Paul Celan, Jack London, Primo Levi ou Sylvia Plath, que quiseram e conseguiram «desembaraçar-se do seu eu» (Kierkegaard). Diz Styron: «Nunca saberei o que ‘causou’ a minha depressão, tal como jamais ninguém o saberá no que diz respeito à sua.» Salienta Granger que o escritor acumulou múltiplos factores de risco, como o genético, o alcoolismo seguido pela intolerância ao álcool, o abuso dos soníferos, o início da velhice e, sobretudo, a morte da mãe aos treze anos e um luto incompleto. Quanto ao suicídio, é certo que ele está bem presente em várias obras de Styron, que não obstante considera ter a prática da escrita assumido, no seu caso, uma evidente função antidepressiva: «O romance, que quase por definição é uma espécie de sonho, diz-nos muitas vezes verdades difíceis de aceitar; no entanto – tal como os sonhos – é capaz de libertar o espírito pela catarse da imaginação, do enigma e do terror.»

A depressão será condição da ficção, da filosofia, da poesia? Robert Burton (1570-1640), criador da monumental «Anatomia da Melancolia» e ele próprio melancólico «solitário e sedentário», como se classificou, perguntava-se se escrever sobre o seu estado seria agravar o sofrimento ou tentar curar o mal com o mal. Poderia a literatura funcionar como um contra-veneno? Lamartine formulará as «doentias» questões susceptíveis de o conduzir à depressão: «E que é a Terra? E que é a vida? E que é a glória? E que é o amor?» A Terra é uma prisão flutuante; a vida, um curto espanto; a glória, «um escárnio da nossa vaidade»; quanto ao amor, seria tudo, «se não fosse acabar». E Baudelaire, presa da inquietação metafísica e do «spleen», atrever-se-á a indagar em voz alta o que alguns dos seus pares apenas lograram ciciar: «Onde estão os nossos amigos mortos? Porque estamos aqui? Viemos de algum lugar?»

Recusando-se a aceitar o vazio da existência, um Volney, um Chateaubriand, um Flaubert ou um Maupassant mergulharão na melancolia, ao passo que Camus responderá aos limites da nossa existência com o conceito de absurdo e Breton com o de revolta. Quanto a Sartre, sabe-se que o título de «A Náusea» (1938) começou por ser «Melancolia» – neurose da qual, vinte e seis anos depois, com «As Palavras», sua única obra assumidamente autobiográfica, se disse «liberto». O mundo passou então a ter um sentido para o autor de «O Ser e o Nada»? Se é certo que o solitário conheceu entretanto a fraternidade e se tornou solidário com os mais sacrificados dos seus contemporâneos de todo o planeta, se interveio, como poucos no século XX, pela teoria e pela prática, na vida política francesa e internacional, será que o seu sistemático «engagement» o curou? Ou foi também porque continuou a entregar-se à tarefa de escrever que conseguiu escapar à melancolia? A resposta veio do próprio filósofo da liberdade: «Este velho edifício ruinoso, a minha impostura, é também o meu carácter: desfazemo-nos de uma neurose, não nos curamos de nós próprios.»

Tenhamos bem presente o grito de Virginia Woolf: «Navego sobre vagas agitadas. E quando me afundar, ninguém estará lá para me salvar». Quem ignora a maldição que pesa sobre os melancólicos que ousam explorar os seus mais ocultos abismos individuais, que são também os da nossa tão frágil e aterradora condição humana?

Les Collections du Magazine Littéraire, «Les Écrivains et la Mélancolie», Outubro-Novembro de 2005, 98 páginas