António Ventura/«José Régio e a Política»

Sobre o «umbicalista» Régio

António Rego Chaves

Éramos muito jovens e líamos os poetas. Talvez porque ainda não havia internet, reuníamo-nos em cafés e conversávamos longamente pelas noites fora. E sucedeu entrarmos na política, em pleno salazarismo. Gostávamos de José Régio: recitávamos o «Cântico Negro» e repetíamo-nos: «sei que não vou por aí». A verdade é que alguns iam e outros não iam: foi a vida…

Começámos, depois, a ouvir dizer mal do poeta: seria «umbicalista», «reaccionário», etc. O «umbicalista», averiguámos, provinha de uma já velha polémica com Álvaro Cunhal, o «reaccionário» partira de «estruturas» associáveis ao líder comunista. Quanto ao «etc.», não se sabia aonde tinha nascido, melhor, fora inventado pelo caminho que conduzira às «bases». Houve, depois, quem nos quisesse «ensinar» que o maior poeta português vivo não era nem José Régio, nem Mário Cesariny, nem Herberto Helder, nem Alexandre O’Neill, mas alguém que não nomeio aqui porque decerto não foi o culpado do delito. E assim José Régio, agora despromovido a «poeta menor», desapareceu do nosso colectivo, como que por encanto. Como que por encanto, não é bem assim: devido a «ordens vindas de cima». Não era esta a expressão utilizada, mas uma equivalente. Salvo erro, associada à mítica «luta do povo português contra o fascismo».

Com este livro de António Ventura (que era ainda muito jovem em 1969, o ano da morte de José Régio) estamos longe de uma obra memorialística. Mas o historiador e professor da Faculdade de Letras de Lisboa ergue uma voz firme e serena contra os detractores do poeta, alinhando ideias e factos. Não se trata de texto apologético, nem de apresentar mais um «herói» da Resistência: cuida-se, sim, de demonstrar que o autor dos «Poemas de Deus e do Diabo» não foi cúmplice do salazarismo, antes devendo ser evocado como um «democrata, socialista e cristão», antifascista e anticomunista.

Atente-se: simples professor de liceu em Portalegre, cada palavra escrita ou falada do poeta encontrava-se sob vigilância – e os perigos eram bem conhecidos: o processo disciplinar, a suspensão, a demissão compulsiva. Quanto aos actos, os riscos eram acrescidos, culminando com a detenção. Havia, pois, um alto preço a pagar por ser «herói»: e, inúmeras vezes, ou apoiando a Oposição Democrática com textos publicados na Imprensa e abaixo-assinados, ou com a sua presença em «sessões de esclarecimento», o cidadão Régio se arriscou a ser alvo das represálias do situacionismo.

Porque caiu em desgraça perante a Esquerda? Tudo parece ter começado com a polémica encetada pelo então jovem Álvaro Cunhal que, em 1939, o acusou de «adorar o próprio umbigo e cantar», embora vendo nele «um dos mais poderosos e capazes poetas portugueses contemporâneos quanto ao potencial e capacidade de expressão». José Régio respondeu sem rodeios a quantos pretendiam erigir o chamado «realismo socialista» em norma de criação no domínio das artes e das letras: «Não admito que se pretenda impor temas ou formas a um artista. Melhor: não admito que se pretenda impor nada a um trabalhador intelectual.» Ao mesmo tempo, afirmava o seu «amor pelos deserdados de qualquer espécie» e que esse amor não era «produto de nenhuma ortodoxia ou credo político», antes mergulhando as suas generosas raízes «num profundo sentimento de fraternidade e justiça».

O essencial do desencontro com o PCP não se encontrava, porém, nesta polémica literária e ideológica, mas em posições assumidas por Régio muitos anos mais tarde. Com efeito, em 1960, num artigo publicado no jornal «O Comércio do Porto», com o título «O Mundo português», o poeta mostrara-se em sintonia com sectores da oposição republicana e socialista, que então colocavam sérias reservas à autodeterminação dos «territórios ultramarinos». A posição do PCP era outra, pois defendia, desde 1957, o direito à independência das colónias portuguesas. Posteriormente, Régio repudiaria a acusação de «patrioteirismo» que lhe foi feita, a ele e a quem julgava que, uma vez «abandonados por nós, quaisquer territórios portugueses de além-mar ou cairiam na anarquia, na selvajaria dos instintos à solta, ou haveriam de se submeter a qualquer potência estrangeira».

Na década de sessenta, pois, e apesar das suas múltiplas intervenções como oposicionista, o poeta estava marginalizado pelo PCP: para isso também terá contribuído o aproveitamento que o «Diário da Manhã», o pasquim do salazarismo, fez das acima citadas opiniões de José Régio acerca do futuro das colónias portuguesas. Até Vergílio Ferreira, cujas tomadas de posição anticomunistas seriam notórias, abandonou, em sinal de protesto, o projecto de escrever um livro sobre a obra do autor d’«As Encruzilhadas de Deus».

A verdade é que o poeta era, politicamente, um descrente. Descrente do marxismo, da URSS, do capitalismo, dos EUA, da China, da França, da Alemanha, da Espanha, não tanto da Inglaterra («ainda é de lá que nos vem a esperança dum socialismo inteligente e humano!», disse). Daí que se alheasse tanto quanto lhe era possível da acção: «Não vejo toca donde saia coelho... E as transformações que, provavelmente, o mundo sofrerá – ultrapassam imensamente questõezinhas locais. Que pode fazer Portugal senão ir atrás… e devagar? Em questões sociais e até políticas, já não vejo senão à escala do mundo» – confessava, em 1958, ao seu «Diário Íntimo».

Melhor do que quaisquer outras, talvez as seguintes frases, escritas em 1949, após a campanha eleitoral de Norton de Matos, em que participou intensamente, descrevem Régio: «Foi com grande prazer que voltei, depois da agitação destes dias, ao meu mundo interior e à minha toca, à minha vida íntima de artista místico. Esta é que é, sem dúvida, a minha profunda e verdadeira vida. Não obstante, nunca me arrependo de ter entrado nessa agitação. Suponho que voltarei a ela quando entender que assim o devo. Não poderei gozar a minha vida íntima, sem me comportar decentemente.»

António Ventura, «José Régio e a Política», Livros Horizonte, 2003, 109 páginas