José Mattoso («Levantar o Céu»)

Um humanismo, hoje

António Rego Chaves

Anuncia José Mattoso: «Os textos aqui reunidos foram escritos ao sabor de solicitações variadas, a que tentei responder na medida das minhas possibilidades e segundo as minhas convicções pessoais. Uns são mais ‘cívicos’, outros mais espirituais; uns inspirados no senso comum, outros na mensagem evangélica; uns recorrem à História, outros a princípios intemporais. Qualquer que seja a linguagem e o pensamento que os inspira, pretendem todos contribuir em alguma coisa para ‘levantar o Céu’.»

Explica a seguir o autor: «’Levantar o Céu’ é o nome que os mestres de chi kung (uma variante do tai chi) dão a um dos seus principais exercícios. Consiste, fisicamente, em levantar os braços em arco com as palmas das mãos apontadas uma para a outra e viradas para cima, isto é, para o ‘Céu’. Pouco importa a execução do exercício. Tomo-o como metáfora de uma atitude de vida que dá a primazia ao Céu, no sentido que a palavra tem, por um lado, na cultura chinesa, e, por outro, na nossa.» Segue-se um conjunto de ensaios cujo fio condutor, apesar da diversidade dos temas abordados e da sua só aparente desconexão, será a insistente procura de um humanismo de raiz cristã, que abrange tanto a vida contemplativa quanto a vida activa.

«Que aconteceria se a Terra prevalecesse sobre o Céu, o yin sobre o yang, o egoísmo sobre a generosidade, a força sobre a beleza, a ignorância sobre a sabedoria, a violência sobre a persuasão?» – pergunta o pensador. E responde sem pessimismo, embora bem saiba, enquanto historiador, que o egoísmo vence a generosidade, que a força vence a beleza, que a ignorância vence a sabedoria, que a violência vence a persuasão – e vence desde sempre, desde que o mundo é mundo. Lampedusa lembrou-o de forma lapidar: «Se vogliamo che tutto rimanga come è, bisogna che tutto cambi.»

O ensaísta quer deixar uma mensagem de esperança, talvez porque prevê «cada vez mais perto do fim» a sua «caminhada na vida»: «Renunciando por completo a fazer contas, é bom acreditar que merece a pena ‘levantar o Céu’, e lembrarmo-nos de que não estamos sozinhos. Felizmente há muitas mulheres e homens neste mundo a tentar unir esforços para manter o contacto entre o Céu e a Terra. É esse o caminho que a sabedoria ensina a percorrer para encontrar a saída do labirinto em que a vida nos coloca.» Existem decerto muitos homens e mulheres que, com os pés na Terra, se esforçam por «copiar» o Céu; mas serão suficientes para mudar o mundo?

Ao seu evidente voluntarismo, contrapõe José Mattoso uma severa lucidez suscitada pela feroz rudeza dos factos económicos e sociais: «Depois das esperanças de liberdade, de justiça, de democracia, de vitória sobre a exploração do homem pelo homem que nos animaram nos anos sessenta, e que nos nossos dias se dissiparam, voltou para muitos o sentimento da proximidade do fim dos tempos, mas não a esperança num mundo melhor.»

O autor não esquece «o agravamento do fosso que separa os pobres dos ricos, por causa da globalização da economia e da irresponsabilidade da alta finança». E torna-se então céptico: «Quem fala, hoje, em bem, beleza, justiça, liberdade, progresso, democracia, solidariedade, bem comum, autoridade, humanismo, solidariedade?» (sic). «E se alguém fala de tais valores, quem se deixa persuadir por tais discursos? Muito pelo contrário: julga-se que quem mais invoca esses ideais é quem menos acredita neles.»

Aqueles que para si reivindicam, em nome do Estado, «o monopólio da violência física legítima» (Max Weber), aqueles que, «senhores do dinheiro e do poder, hão-de continuar para sempre a apropriar- se de tudo sem partilhar nada de essencial», que oportunidades dão «aos que trabalham e comem o pão com o suor do seu rosto?» Assim se interroga e nos interroga o cidadão José Mattoso: denunciando esta «época de individualismo exacerbado e de desresponsabilização perante a sociedade»; tomando o partido dos pobres e dos fracos contra os poderosos – «uma minoria cada vez mais arrogante e insensível»; pondo em relevo «o egoísmo dos Estados» e alertando para que «só uma pequena percentagem da população mundial (excluindo, pois, a grande maioria dos habitantes da Ásia e da América do Sul e a quase totalidade dos de África, além de uma incalculável quantidade de pessoas que vivem em condições indignas nos países desenvolvidos)» usufrui, hoje, da chamada «civilização ocidental» e das comodidades que ela garante a alguns de nós, apenas a alguns de nós.

Talvez aqui a palavra-chave seja, consoante a idiossincrasia ou a cultura veiculada por cada um, «caridade», «fraternidade», «solidariedade». Mas pouco poderão contar, no caso, os matizes semânticos. É a omissão e a negação dos actos que corresponderiam a cada vocábulo e pelas quais somos inteiramente responsáveis em cada momento da nossa existência que se torna, dia a dia, irremediável. Pois, como acaba por concluir José Mattoso, «a sabedoria não é uma doutrina, nem uma moral. É uma práxis.»

Estes poderiam ser, hoje, os prolegómenos a todo o humanismo futuro (cristão, muçulmano ou judaico, ateu ou agnóstico) que se queira apresentar como sabedoria. Quanto ao mais, que se procure com denodo a salvação individual, que é a de todos – e não menos na Terra que no Céu…

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Sumário de «Levantar o Céu- Os labirintos da Sabedoria»: Introdução. Parte I – SABEDORIA E RAZÃO: A luta pelos valores no fim do milénio. O poder judicial ontem e hoje. A morte das utopias e o fim da História. O lugar da História. Eutrapelia. Desenvolvimento e cidadania. As três religiões do Livro. Parte II – SABEDORIA E FÉ: Onde está a sabedoria medieval? Olhares sobre o sagrado. «A Nuvem do Não-Saber». Contemplação e Intercessão. Taciturnidade e silêncio. Contemplação e acção, ontem e hoje. Sabedoria e fraternidade. A sabedoria. Viver e saber.

José Mattoso, «Levantar o Céu – Os labirintos da Sabedoria», Temas e Debates/Círculo de Leitores, 2012, 290 páginas