Rudolf Bultmann/Martin Heidegger («Correspondencia»)

De ler até às lágrimas

António Rego Chaves

Pegamos nesta correspondência entre duas figuras maiores do século XX nos campos da Teologia e da Filosofia, Rudolf Bultmann (1884-1976) e Martin Heidegger (1889-1976), enredamo-nos em pequenas intrigas das universidades alemãs dos anos 20, 30 e 40 do século XX, chegamos a meio quase prontos a proferir um veredicto, mas continuamos. Afinal talvez não haja nada para julgar, talvez tudo esteja aqui apenas para nos fazer pensar.

Durante cinquenta anos, entre 1925 e 1975, as duas personagens trocaram uma correspondência não poucas vezes desinteressante, que nem sequer mereceria ser redigida. Não que lhes escasseassem os temas filosóficos e teológicos para debater, não que ignorassem o que de facto contaria depois de alguns tristes episódios da «struggle for life», não que os tempos de indigência que viveram lhes tivessem anulado a criatividade. Mas porque, além de grandes vultos da cultura, não deixavam de ser homens comuns, evidenciavam suas mesquinhas preocupações e não sublimavam a ânsia de ocupar os seus lugares ao sol, embora eles fossem amplamente merecidos.

Lá para o fim, no entanto, vão revelando o melhor que ficara dentro de si. São de ler até às lágrimas as suas últimas cartas. Dois velhos senhores, que o nazismo separou, preservam o que outrora os uniu: reconhecem quase em silêncio, quase sem palavras, que, para lá de todos os desentendimentos, têm um passado inesquecível de vivências em comum. E dialogam, sabe-se lá se com reservas, mas dialogam com o coração até aos seus últimos dias. Asseguro-vos: algumas destas cartas são de ler até às lágrimas. Talvez por serem testemunho de amizade, do que mais conta no caminho dos homens.

Depois de tanto tempo perdido, em 14 de Julho de 1969, Rudolf Bultmann escreve: «Agora sinto-me velho e inseguro, o ouvido e a vista debilitam-se, e tenho muita dificuldade em ler. Também fiquei cada vez mais só.» Meses depois, a 30 de Janeiro de 1970, envia ao amigo uma estrofe de Matthias Claudius, um teólogo protestante do século XVIII: «Ó Deus!, que a tua salvação possamos ver/ sem confiar no que há-de perecer. /Longe de sentir agrado por coisas vãs,/concede-nos a graça de ser simples,/e que aqui na terra como meninos/tenhamos alegre e devota a alma.» Em 15 de Dezembro do mesmo ano, o tom do teólogo é pungente: «As minhas forças, as corporais e as mentais, já não dão mais de si. Sou tão velho que há que pensar na despedida, e despeço-me de uma vida rica em trabalho e alegria, em amor e amizade; é uma despedida cheia de gratidão.»

A 8 de Abril de 1973, em Friburgo, Heidegger envia este «simples» postal a Bultmann: «No final, aí aonde tudo se congrega nas horas e os dias da despedida terrestre, permanece a gratidão. Ela transforma e suaviza a dor. E leva uma marca do estar perto dos mais queridos.» Quase seis meses depois, em 3 de Outubro: «Nestes dias cheguei eu a Marburgo há meio século. E logo no primeiro semestre começou a nossa amizade, que durou toda a vida. Isto não merece outra coisa senão uma gratidão silenciosa.»

A 21 de Dezembro de 1973, o filósofo insiste: «Na velhice, o festivo das festas é o silêncio.» E, no ano seguinte, em 17 de Agosto, evoca o convívio de ambos em Marburgo: «No começo do nosso caminho, na época de estudos, nenhum de nós pressentiu sequer que nos seria concedido o dom singular de passar cinco anos em comum actividade docente, um encontro, sempre estimulante, com uma juventude desperta, desejosa de rigor no trabalho e ao mesmo tempo alegre, o dom das amistosas conversas, sempre interessantes, e a simpatia espontaneamente surgida entre as nossas famílias. Mas o facto é que isso sucedeu. O seu silêncio e a sua repercussão pública não podem calcular-se. A autêntica irradiação continua a ser um mistério, não é mérito nosso e, no entanto, pertence ao decurso da nossa vida e exige, em consequência, uma actualização constantemente nova, acompanhada por um exame de si própria. A esta irradiação segue-se a gratidão, que permanece até uma idade adiantada e mesmo suprema.»

E conclui Heidegger: «Que o delicioso desta recordação te ilumine como uma luz silenciosa e invisível no teu nonagésimo aniversário, no dia em que com toda a certeza nos manterá longe, tanto a ti como a mim, de tomar como algo extraordinário o que conferiu êxito ou malogro aos nossos esforços.» Transcreve, em seguida, esta passagem de um poema de Goethe: «Também em jardins diferentes/caem frutos de árvore ao mesmo tempo.»

Muito haveria a dizer sobre o que separava estes dois homens em matéria de concepções políticas, o que aliás ficou bem patente após o famoso discurso de tomada de posse por Heidegger do cargo de reitor da Universidade de Friburgo, em 27 de Maio de 1933, nos primeiros meses do III Reich. Pouco depois, a 18 de Junho de 1933, Bultmann dirige uma carta ao seu «querido amigo» onde se demarca frontalmente do nacional-socialismo, em relação ao qual se manteria sempre crítico. A partir daí a correspondência esfria, escasseia, torna-se evidente o distanciamento: mas não há ruptura. Após a Segunda Guerra Mundial, lentamente, opera-se a reaproximação. Poder-se-á perguntar se é concebível que um cristão seja amigo de um nazi: o teólogo luterano teria respondido, decerto, que sim.

Lede estas cartas, sobretudo as últimas. Lede-as em alemão se puderdes, ou em castelhano como eu li, pois em português de Portugal não as lereis sem dúvida, a não ser que alguma piedosa fundação as faça traduzir, se possível nesta velha ortografia que aqui uso. Repito-vos: são de ler até às lágrimas.

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Seis textos de grande significado complementam a correspondência: 1) Conferência de Heidegger sobre Lutero em 1924; 2) Artigo de Bultmann sobre Heidegger (1928); 3) Poema de Nietzsche enviado por Heidegger a Bultmann no Natal de 1931; 4) Declaração de Bultmann de 2 de Maio de 1933 com o título «Atarefa da teologia na situação actual»; 5) Conferência de Heidegger sobre Lutero em 1961; 6) Reflexões de Rudolf Bultmann sobre o caminho do pensamento de Martin Heidegger (1963).

Rudolf Bultmann/Martin Heidegger, «Correspondencia, 1925-1975», Herder, 2011, 398 páginas