António Rego Chaves/Simone Weil, anarquista e mística

RETRATOS. «Virgem Vermelha», professora, sindicalista revolucionária, assalariada da Renault e de outras fábricas para viver na carne a humilhação da condição operária, (só interrompida em França durante a Frente Popular), crítica impiedosa do nazismo, do estalinismo, do trotskismo e da tecnocracia, combatente na Guerra de Espanha, resistente ao ocupante alemão, libertária, filósofa, mística, cada um guardará de Simone Weil (1909-1943) a imagem que considerar mais adequada à realidade essencial da sua breve existência.

Conserve-se o retrato que se conservar, será impossível ignorar a relação visceral que em Simone Weil assumem política e fé. Veja-se como fala da sua passagem pela Renault: «Aí recebi para sempre a marca da escravidão como a marca de ferro em brasa que os romanos punham nos seus escravos mais desprezados. Depois considerei-me sempre uma escrava.» Confronte-se com a forma como experimentou em Portugal, na Nazaré, durante o Verão de 1935, uma vivência que a marcará profundamente e em que se torna bem evidente o seu misticismo:

«Entrei nesta pequena aldeia portuguesa que era, infelizmente, muito miserável, só, à noite, sob a lua cheia, no próprio dia da festa da padroeira. Era à beira-mar. As mulheres dos pescadores davam voltas em torno dos barcos, em procissão, levando velas, e cantavam cânticos certamente muito antigos, duma tristeza dilacerante. Nada pode dar uma ideia disso. Eu nunca ouvira nada tão doloroso senão o cântico dos barqueiros do Volga. Lá tive, de repente, a certeza de que o cristianismo é por excelência a religião dos escravos e que os escravos não podem deixar de aderir a ele, e eu entre eles.»

PERSONAGEM. O retrato que Simone de Beauvoir fez de Simone Weil desperta-nos desde logo a curiosidade: «Intrigava-me devido à sua grande reputação de inteligência e pelo seu vestuário extravagante. Deambulava pelo pátio da Sorbonne, escoltada por um bando de antigos alunos de Alain; tinha sempre num dos bolsos da blusa à marinheiro um número dos «Libres Propos» e no outro um número de «L’Humanité». Uma grande fome acabava de devastar a China; contaram-me que, ao saber desta notícia, ela soluçara; as suas lágrimas, ainda mais que os seus dons filosóficos, forçaram o meu respeito. Invejava um coração capaz de bater por todo o Universo. Consegui um dia aproximar-me dela. Já não sei como é que a conversa começou; declarou com um tom rude que só uma coisa contava na Terra: a Revolução que desse de comer a toda a gente. Retorqui, de maneira não menos peremptória, que o problema não estava em se dar felicidade aos homens mas em se encontrar um sentido para a sua existência. Ela fez-me calar, dizendo: ‘Vê-se bem que nunca passou fome’».

No escasso tempo que durou a sua idade adulta (morreu aos 34 anos), a personagem que foi Simone Weil viveu intensamente um diálogo febril e sempre crítico com as ideias e as pessoas de homens tão díspares e inovadores como Alain, Gustave Thibon ou Lanza del Vasto, ao mesmo tempo que se debruçava apaixonadamente e se encontrava em Platão, Marx, Gandhi, os Evangelhos, as Upanixads, a Bhagavad-Gitá, o Livro dos Mortos do Antigo Egipto.

Michel Serres: «Ela foi a primeira que nos fez entender todos os textos religiosos nascidos na alta antiguidade, de cultura em cultura e de geração em geração, de doutrinas e crenças diferentes, como a única planta, a única raiz, o salmo dos homens. Há realmente algo mais que precisasse anunciar? Simone Weil nunca cessou de fazer-se eco dessa voz, o humilde instrumento dessa música.»

Um dia, esta pensadora cristianíssima que a si mesma se classificou como «mulher fora da Igreja», dirá com toda a clareza, com uma indesmentível coragem: «O cristianismo deve conter em si todas as vocações, sem excepção, porque é católico. Por conseguinte, também a Igreja. Mas, a meu ver, o cristianismo é católico de direito, e não de facto. Tantas coisas estão fora dele, tantas coisas que eu amo e que não quero abandonar, tantas coisas que Deus ama, pois senão não teriam existência. Toda a imensa extensão dos séculos passados, com excepção dos 20 últimos; todos os países habitados pelas raças de cor; toda a vida profana nos países de raça branca; na história destes países, todas as tradições acusadas de heresia, como a tradição maniqueia e albigense; todas as coisas saídas do Renascimento, demasiadas vezes degradadas, mas não desprovidas de valor. Sendo o cristianismo católico de direito e não de facto, considero legítimo para mim ser membro da Igreja de direito e não de facto, não só durante certo tempo, mas eventualmente toda a vida.»

Numa carta a Jean Wahl, em 1942, expõe com uma transparência dificilmente ultrapassável a sua «teoria das religiões»: «Creio que um pensamento idêntico se encontra expresso, de uma forma muito rigorosa e em modalidades subtilmente diferentes, nas mitologias antigas; nas filosofias de Ferécides, Tales, Anaximandro, Heraclito, Pitágoras, Platão e dos estóicos gregos; na poesia grega da época áurea; no folclore universal; nas Upanixads e na Bhagavad-Gitá; nos escritos dos taoistas chineses e em certas correntes budistas; naquilo que resta das escrituras sagradas do Egipto; nos dogmas da fé cristã e nos escritos dos maiores grandes místicos cristãos, sobretudo São João da Cruz; em certas heresias, sobretudo a tradição cátara e maniqueia.»

Será necessário soletrar, desde já, a palavra ecumenismo – só dois decénios depois posta em voga pelo Vaticano II?

TROTSKI. Albert Camus e T. S. Eliot consideraram Simone Weil um dos pensadores mais importantes do século XX. Talvez desde muito cedo, ela sabe quanto vale, não se subestima no terreno das ideias. De igual para igual, mantendo com firmeza as conclusões a que a conduziram, não apenas um raciocínio brilhante, mas também uma genuína intuição da evolução do primeiro regime político que reivindica a prática marxista, enfrentará Trotski, olhos nos olhos. Terá, indubitavelmente, razão antes de tempo, pois será ela quem lhe quererá ensinar, em 1933 – quando talvez os tempos ainda não estivessem maduros para tamanha ousadia –, que a «ditadura burocrática» do Estado soviético, iniciada por Lenine e reforçada por Estaline, nunca poderá conduzir a URSS ao socialismo.

O «velho» revolucionário reage com alguma impaciência às opiniões da atrevida «miúda» de 24 anos, que ousa pôr em causa o seu saber de experiência feito. Considera que a burocracia soviética, embora seja um mal, não ameaça as conquistas da Revolução de Outubro. E, com alguma sobranceria, não se absterá de classificar Simone Weil como «caprichosa», «anarquista» e veiculadora dos mais reaccionários preconceitos pequeno-burgueses. A História, porém, ainda mais implacável do que a argúcia ou os pressentimentos da jovem francesa, encarregar-se-á de dar razão, não ao orgulhoso criador do Exército Vermelho, mas à frágil – ainda que nada humilde – filósofa do Quartier Latin.

Dezassete anos mais tarde, Albert Camus lembrará em «O Homem Revoltado»: «Às duas formas tradicionais de opressão que a Humanidade conheceu, pelas armas e pelo dinheiro, Simone Weil acrescenta uma terceira, a opressão pela função.‘Pode-se suprimir a oposição entre o comprador e o vendedor de trabalho, escreve ela, sem suprimir a oposição entre os que dispõem da máquina e aqueles de quem a máquina dispõe’». Palavras sábias a recordar no século XXI, que parece ter nascido envolto em hossanas renováveis à harmonia entre o capital e o trabalho...

BERNANOS. Também de igual para igual, escreverá a Georges Bernanos, provavelmente em 1938, depois de ter lido «Os Grandes Cemitérios sob a Lua». Que tem a dizer a obscura militante de extrema-esquerda que é Simone Weil na altura ao consagrado escritor católico e monárquico? Ela, que considerou a revolta dos generais espanhóis como uma agressão contra o povo espanhol que deveria ser combatida sem tréguas, ele que não vislumbrou «qualquer objecção de princípio a formular contra um golpe de Estado falangista»?

Georges Bernanos tornara-se digno de todo o crédito por parte dos seus «inimigos» ideológicos (encontrava-se em Maiorca quando se iniciou a Guerra Civil e tinha um conhecimento directo dos crimes cometidos pelos falangistas), pois rapidamente se apercebeu de que a «Cruzada» franquista, abençoada pela Igreja Católica a pretexto de defender os valores da civilização cristã, cometia as piores atrocidades contra a população. «Não é o uso da força», escreveu, «que me parece condenável, mas a sua mística; a religião da Força posta ao serviço do Estado totalitário, da ditadura do Serviço Público, considerado, não como um meio, mas como um fim.»

Simone Weil tomou como um dever de consciência juntar-se aos republicanos para combater a seu lado contra as forças «nacionalistas». Mas, uma vez chegada a Espanha, presenciara idênticos actos de criminosa violência, desta vez cometidos pelos seus camaradas de luta. Devido a um acidente, abandona a causa que considerava justa – mas revoltada e sem intenções de voltar ao campo de batalha. Justifica-se: «Já não sentia qualquer necessidade interior de participar numa guerra que deixara de ser, como me parecera ser ao princípio, uma guerra de camponeses esfomeados contra os proprietários de terras e um clero cúmplice dos proprietários, mas uma guerra entre a Rússia, a Alemanha e a Itália.» A desilusão talvez explique o aparente simplismo das últimas palavras, escritas como se, para além da «exploração capitalista», e da «opressão burocrática», não fosse possível lutar por uma «terceira via» da esquerda revolucionária inspirada na pujante tradição anarco-sindicalista espanhola…

Na carta que envia a Georges Bernanos fica bem patente o que une a remetente ao destinatário: se Bernanos se escandalizou com os crimes cometidos por católicos e abençoados pela sua Igreja em Espanha e no Vaticano, Simone Weil não se escandalizou menos com os crimes cometidos pelos seus companheiros republicanos. Para ambos, romancista e filósofa, os valores humanitários que emprestam um significado transcendente às suas vidas foram irremediavelmente atingidos. E esses valores são, também para ambos, valores próprios do autêntico cristianismo, pois repudiam sem apelo o «império da força».

PARTIDOS. O «ataque» de Simone Weil aos partidos políticos (então qual é o outro termo da alternativa?, perguntarão acto contínuo os seus contraditores em tom vagamente anglo-saxónico e recordando uma estafada frase de Winston Churchill sobre a democracia «burguesa», que é sobretudo uma mal disfarçada defesa do imobilismo) constitui, sem dúvida, o produto de um pensamento utópico, jamais inquinado de pragmatismo, muito menos de oportunismo.

Vale a pena lembrar – hoje como ontem – que «um partido político equivale a uma máquina de fabricar paixão colectiva», que é «uma organização construída de forma a exercer uma pressão colectiva sobre cada um dos seres humanos que são os seus membros». Mais: que um partido político, por natureza, não passa de um MEIO, mas acaba sempre por se transformar no FIM quase exclusivo da sua própria actividade. Pior ainda: que os homens aceitam muito frequentemente vergar-se à disciplina do seu partido, o que lhes permite ter uma desculpa para não assumirem plenamente a responsabilidade dos seus actos e para não pensarem – sendo que «não há nada mais confortável do que não pensar».

Nesta tão cinzenta era do pretensamente consensual, em que é considerado «cavernícola» ou quase obsceno denunciar por escrito os públicos vícios das democracias parlamentares, não cairá bem lembrar, com Simone Weil, a mais pura das verdades, a saber, que todos os regimes ocidentais estão gravemente doentes devido à falta de democracia interna que caracteriza os seus partidos políticos; mas impõe-se sublinhar que, porventura, a única revolução por agora possível consiste em continuar fiel a um espírito que recusa «as mentiras por meio das quais se pretende disfarçar ou desculpar a humilhação sistemática das maiorias» pelas minorias burocráticas que detêm as rédeas do Poder.

COLONIALISMOS. A sensibilidade de Simone Weil relativamente à dignidade humana, onde quer que ela seja ameaçada, leva-a a prestar uma especial atenção ao problema do colonialismo, numa época em que a ideologia dominante nas sociedades ditas «civilizadas» considerava impensável «conceder» a independência aos territórios subjugados da África ou da Ásia, com base numa pretensa «menoridade» intelectual e política dos «pretos» e dos «amarelos». Não reivindica claramente a autodeterminação e independência para os povos colonizados – teria sido anatemizada por todas as cabeças bem-pensantes dos anos 30 do século XX –, mas aponta a solução do problema quando diz que eles devem «sentir-se livres».

Já no contexto da II Guerra Mundial, afirma que «o hitlerismo consiste na aplicação pela Alemanha ao continente europeu, e mais geralmente aos países de raça branca, dos métodos de conquista e de domínio colonial». «A analogia é evidente entre os processos hitlerianos e as conquistas coloniais», sublinha. «O mal que a Alemanha teria feito à Europa se a Inglaterra não tivesse impedido a vitória alemã – escreve – é o mal que provoca a colonização, o desenraizamento. Ela teria privado os países conquistados do seu passado. A perda do passado é a queda na servidão colonial. O mal que a Alemanha tentou sem êxito fazer-nos, nós fizemo-lo a outros.»

O vírus vinha, pois, de longe: era um vírus mortífero e antigo, tão mortífero e tão antigo que não se poderia falar dele sem evocar o Deus israelita da «guerra santa» contra os amalecitas e o regime totalitário do Império Romano, as Cruzadas e a Inquisição – e sem pôr em causa Igreja Católica enquanto coisa social, isto é, enquanto instituição interessada no poder temporal. Uma Igreja que pactuara com o culto da violência, traindo os mais sagrados valores semeados por Jesus: «É bem verdade que Jeová, o Deus dos exércitos, sob o seu disfarce cristão, conquistou pelas armas o globo terrestre.»

Simone Weil não poupa o islamismo e o judaísmo («Jeová, Alá e Hitler são deuses terrestres»), como não poupa o catolicismo: perverter a fé envolvendo-a na ideologia da «guerra santa» ou da «guerra justa» é fomentar uma cultura da violência, onde a não-violência da mensagem evangélica não pode ocupar qualquer lugar. O malogro histórico das três grandes religiões monoteístas parecia-lhe indisfarçável.

Ficam também no ar as palavras de Lanza del Vasto, essa personagem luminosa por quem se apaixonou sem reservas logo num primeiro encontro, em 1941, e que declarara que nunca se disporia a ocupar qualquer lugar na violência da guerra, com medo de se encontrar um dia «com Rainer-Maria Rilke na ponta da sua baioneta»: «Como é possível que a Igreja abençoe os canhões, que pregue uma teoria da ‘guerra justa’, que serve para justificar todas as guerras, mesmo uma guerra tão perfeitamente injusta como a da Abissínia, a qual não suscita, entre o seu clero e os seus fiéis, a menor indignação?»

Nem Lanza del Vasto nem Simone Weil foram, como muito bem se sabe, ouvidos a tempo. Nem as Igrejas, nem os políticos profissionais, nem a opinião pública estavam preparados para os escutar. O resultado seria, como também muito bem se sabe, trágico, tanto para os colonizadores como para os colonizados, a quem não restou outra solução senão pegar em armas para libertar as terras que os tinham visto nascer.

GUERRAS. Simone Weil «herda» do seu mestre Alain o pacifismo, mas nem sempre incondicional: viu-se durante a Guerra de Espanha, ver-se-á, com a Resistência, durante a Segunda Guerra Mundial. Ela sabe que foi necessário abrir uma excepção na altura do golpe franquista, não poderá deixar de reconhecer que, perante a ameaça nazi concretizada pela ocupação da França, é lícito lutar de armas na mão contra o invasor. Mesmo quando já é evidente para muitos que a capitulação de Munique (1938) não pode ter senão uma consequência, a tentativa de os alemães alargarem ainda mais o «espaço vital» reclamado por Hitler, Simone Weil hesita, perante a ameaça de uma guerra catastrófica que se poderá espalhar por toda a Europa. Só depois virá a compreender o irrefutável: a saber, que embora não sinta qualquer «repugnância de morrer», a sua «repugnância de matar» a levou demasiado longe na aprovação das concessões feitas ao inimigo – concessões que Hitler aproveitou para desenvolver o culto da violência e a ambição de dominar o Planeta.

A partir de 1939, com a entrada das tropas alemãs em Praga, Simone Weil reconhecerá que a guerra é a única forma de se opor ao «império da força» protagonizado pelos nazis. Logo em 1940, entra em contacto com a Resistência. Estará onde entenderem que deva estar, cumprirá com rigor todas as modestas – mas indispensáveis – missões de que for encarregada. E declara-se «pronta a matar alemães, em caso de necessidade estratégica». Quer participar moral e fisicamente na luta contra o usurpador. Mas, em Londres, entre os exilados franceses, ninguém julga conveniente a presença no continente europeu desta mulher insignificante pelo seu aspecto físico, incómoda pela sua febril actividade intelectual, sempre pronta a pôr problemas, a duvidar das respostas que recebe em troca, a assumir perturbadores escrúpulos morais e até metafísicos que entravam a eficácia de qualquer acção política. Mal chega a Inglaterra, em vão pede a Maurice Schumann e a André Philiph que a enviem para o combate directo contra os nazis, em pleno território francês. Desentende-se com os gaullistas, ao pressentir neles, não tanto os legítimos representantes da pátria ocupada, mas um partido político com o qualquer outro, preocupado acima de tudo com o seu poder no pós-guerra, depois da esperada libertação da França do jugo nazi. E, no entanto, vê em De Gaulle, não certamente um São Carlos de Gaulle, mas mesmo assim «o símbolo de tudo aquilo que no homem recusa a baixa adoração da força»…

NÃO-VIOLÊNCIA. Não obstante as suas tomadas de posição durante a Guerra de Espanha e a Segunda Guerra Mundial, Simone Weil nunca abandona o ideal da não-violência enquanto exigência espiritual – ainda que imperativos de ordem política possam determinar a sua momentânea ocultação. Exemplos históricos como o dos cátaros, que considerava verdadeiros cristãos – ao contrário dos responsáveis da Igreja Católica que os perseguiram e chacinaram –, foram alvo da sua constante meditação. Não advoga, porém, que a não-violência seja um dogma intangível em situações-limite, aliás como o Mahatma Gandhi, relativamente ao qual o seu pensamento nos oferece alguns pontos de assinalável convergência.

Escreve Jean-Marie Muller: «Qualquer filosofia da violência legítima é rigorosamente impossível e, mais ainda, qualquer teologia da violência legítima. No entanto, para melhor legitimar a sua violência, o Homem vai-se persuadir de que o próprio Deus se acomoda a ela, mais do que isso, que a justifica, pior ainda, que a ordena. É precisamente nesta justificação religiosa da violência que Simone Weil vê a última das imposturas.»

Nas religiões judaica, católica e muçulmana, Simone Weil considera que houve uma verdadeira perversão da fé, que esta foi envolvida por uma ideologia da violência «legítima». A violência foi reconhecida como uma virtude, a sua recusa como um vício. As três religiões monoteístas impediram, assim, o nascimento de uma cultura da não-violência. A Igreja Católica encontra-se irremediavelmente associada aos genocídio dos índios americanos, ao esclavagismo de que foram vítimas os povos africanos, às chacinas no sul de França, durante a Idade Média – factos que nem o mais subtil dos teólogos do Vaticano pretenderá ler à luz do amor evangélico.

Foi Gandhi quem parece ter descoberto a «chave» do mistério que permitiu ao judaísmo, ao cristianismo e ao islamismo conservarem a sua boa consciência ao tornarem-se cúmplices da violência. Todos defenderam que «Deus é a Verdade» – em vez de proclamarem que «A Verdade é Deus». Entre as duas fórmulas há o abismo que separa o ódio do amor, a intolerância da tolerância, a guerra da paz. Quem pensa que «Deus é a Verdade» julga também que a sua religião é a única verdade: considera que é detentor da verdade absoluta desde que se submeta aos dogmas, às prescrições e aos rituais da sua religião – julgando que quem não faz o mesmo está a defender o erro. E para defender a verdade e combater o erro entende ter o dever de erradicar, não apenas a heresia, mas o herege. Está dado o passo que conduz à execrável «guerra santa»…

Será necessário sublinhar que, tal como o Mahatma Gandhi, Simone Weil morreu convencida de que «A Verdade é Deus»?

CONSCIÊNCIA(S). Comparemos:

Gandhi: «Rejeito qualquer doutrina religiosa que não esteja em consonância com a razão e que se oponha à moral. (…) Nunca se deve pactuar com o erro, mesmo que ele possa ter o apoio dos textos sagrados.»

S. Weil: «Não reconheço à Igreja qualquer direito de limitar as operações da inteligência ou as iluminações do amor no domínio do pensamento. (…) Não lhe reconheço o direito de impor os comentários com que ela envolve os mistérios da fé como sendo a verdade.»

Gandhi: «De tudo o que eu lia, o que me ficou para sempre foi que Jesus veio para estabelecer uma lei nova. (…) Não mais o olho por olho e dente por dente, mas estar pronto para receber duas bofetadas se vos dão uma e para percorrer dois quilómetros se vos é exigido que percorrais um.» (…) «O cristianismo ainda está por realizar»: «Enquanto não desenraizarmos a violência da nossa civilização, o Cristo não nasceu.» (…) «Parece-me que a concepção do cristianismo adoptada pelo Ocidente é a negação do Sermão da Montanha.»

S. Weil: «A limpeza filosófica da religião católica nunca foi feita. Para a fazer, é necessário estar dentro e fora. (…) «Sabe que, se Saul é punido pelo Eterno, não é porque matou todos os amalecitas, incluindo as crianças e as mulheres passadas pelo fio de espada, mas porque os matou a todos excepto um, porque poupou o rei?» (…) «Como condenar um holocausto se não condenámos todos os holocaustos passados?»

Jean Marie-Muller faz o ponto da questão: Seria necessário, em primeiro lugar, que os padres dissessem que são ateus em relação ao Deus de Saul e que extraíssem daí todas as consequências quanto ao conjunto do Antigo Testamento. Mas, sobretudo, o que Simone Weil esperava, era que fosse a própria Igreja [Católica] que se reconhecesse ateia em relação ao Deus do Antigo Testamento e o declarasse abertamente. Pois ela pretendia que a ruptura que esperava por parte da Igreja se operasse de uma forma estrondosa.»

O Deus guerreiro e justiceiro do Antigo Testamento e o Deus misericordioso do Novo Testamento, o mesmo Deus? Para esta pergunta, o Mahatma Gandhi, como Simone Weil, só poderiam ter encontrado uma resposta: NÃO, NUNCA. O Deus do Antigo Testamento não é o Pai de Jesus.

ANTIJUDAÍSMO? Que não se acuse Simone Weil de anti-semitismo. Corajosamente, assume todas as consequências de ser considerada judia pelas autoridades colaboracionistas de Vichy, em 1941 – embora declare oficialmente não estar de acordo com o rótulo, argumentando: «Nunca entrei numa sinagoga, fui educada sem prática religiosa de qualquer espécie por pais livres pensadores, não sinto qualquer atracção pela religião judaica nem qualquer ligação à tradição judaica, não fui alimentada desde a minha primeira infância senão pela tradição helénica, cristã e francesa.»

Por que motivo não aceitava o Antigo Testamento? Pura e simplesmente porque, aí, na Bíblia, a ordem de extermínio é apresentada como uma ordem de Deus. No entanto, exprimia abertamente a sua admiração por textos como «Isaías, Job, o Cântico dos Cânticos, Daniel, Tobias, uma parte de Ezequiel, uma parte dos Salmos, uma parte dos livros sapienciais, o início do Génesis…» (…) «O Livro de Job, do princípio ao fim, é uma pura maravilha de verdade e de autenticidade…» – dizia.

O que Simone Weil ousou foi «apenas» exercer o seu incontestável direito de livre exame e de livre crítica da religião judaica. Se isso basta para a classificar como culpada de antijudaísmo, então decerto reivindicaria sem pestanejar o seu «pecado». Mas Maurice Schumann «arquivou», a nosso ver, esta questão um tanto bizantina de forma lapidar: «Não é o povo do Antigo Testamento que Simone Weil repudia, (…) mas o Deus do Antigo Testamento: o Deus de Saul, segundo ela demasiado confundido com o Poder.»

Um texto sagrado que sacraliza a violência? Na opinião de Simone Weil, trata-se de uma contradição nos termos. Sobretudo para alguém que, como ela, nem pela «raça» nem pela religião se considerava judia e aderia sem reservas à fé em Jesus, cuja primeira e essencial palavra é Amor – e não a Jeová, «Deus dos exércitos», «falso Deus», «pai terrestre incompatível com um movimento de caridade pura» e para o qual não há vítimas inocentes, mas apenas culpados, vítimas da sua culpa.

René Girard, insuspeito de antijudaísmo e há anos posto em voga por certo «jet set» da antropologia do sagrado, escreverá, em «Des choses cachées depuis la fondation du monde»: «Com Jesus, produz-se uma deslocação simultaneamente minúscula e gigantesca que se situa na sequência directa do Antigo Testamento mas que constitui também uma ruptura formidável. É a eliminação completa, e pela primeira vez, do sacrificial, é o fim da violência divina.» Perante tais afirmações, a sempre frontal Simone Weil decerto perguntaria hoje a René Girard, seu muito atento e confesso – talvez muito mais atento do que confesso – leitor: «Que há aqui de simultaneamente novo e importante relativamente ao que eu tantas vezes pus em evidência?»

MISTICISMO. Se existe alguma classificação que Simone Weil não poderia recusar, é a de mística. Uma mística que não abdica de aplicar sem descanso a inteligência aos dados da fé, mas sem dúvida alguém que se encontra infinitamente mais próxima de um São João da Cruz ou de um São Francisco de Assis do que do Santo Agostinho de «A Cidade de Deus» ou do São Tomás de Aquino da «Suma Teológica». Também por isso, não se converterá ao catolicismo, baptizando-se e comungando, ainda que por vezes nos transmita a noção de permanecer em equilíbrio instável no limiar de alguma renúncia ao pensamento livre que lhe dá acesso. «Nunca censurarei aqueles que se encontram no interior [da Igreja Católica]; pelo contrário, inclino-me mais para os invejar.»

Simone Weil muito desejaria que a Igreja Católica se reformasse radicalmente (quando leio o catecismo do Concílio de Trento, parece-me não ter nada em comum com a religião que nele está exposta», afirmava) retractando-se das suas cumplicidades com a violência e seguindo de uma vez por todas a via do Amor aberta por Jesus. Mas sabe que tal é impossível, como impossível será que a sua voz seja escutada a tempo por algum daqueles que teriam o poder de a ampliar e de lhe imprimir consequências práticas.

A recusa da força e da «violência legítima» implicaria uma ruptura total com o passado e a adopção de uma filosofia e de uma teologia da não-violência. Manchada por ter pactuado com o império da violência, a Igreja Católica, quando Simone Weil morre tuberculosa em Ashford, a 24 de Agosto de 1943, não poderá concordar que, como pensa a filósofa, o critério decisivo que confere autenticidade ao encontro com Deus «não é o que o Homem diz ao Céu, mas o que faz na Terra». Para ela, «a antítese da fé não é a descrença, mas a violência» – e renegar Deus não é ignorar que Ele existe mas pretender que Ele aprova a violência dos homens. Assim sendo, como poderia o Vaticano escutá-la?

Naquele que foi um dos últimos textos que nos legou, porventura muito poucos dias antes de perecer, Simone Weil deixou bem claro que só poderia entrar na Igreja Católica caso esta repudiasse «uma rotina de pelo menos 17 séculos». O mesmo seria reconhecer que se condenava para sempre a ser «cristã fora da Igreja» ou repetir o que em 1942 escrevera a Gustave Thibon: «Estou pronta a morrer pela Igreja mais do que a entrar nela, porque morrer não implica nenhuma mentira.»

«ENTREVISTA» COM SIMONE WEIL

A obra considerada de referência para a biografia de Simone Weil é, desde 1973, a de Simone Pétrement (falecida em 1992), sua amiga e condiscípula no liceu e na École Normale Supérieure. Trata-se, sem qualquer dúvida, de um livro sério, minucioso e exaustivo nos pormenores, mas terrivelmente marcado, ao longo das suas sete centenas de páginas, pela «crueldade» de não poupar os leitores ao que é negligenciável ou acessório na existência da personagem. Interroguemos Simone Weil e recolhamos as respostas – rigorosamente transcritas neste espaço – que Simone Pétrement encontrou para as nossas perguntas nos escritos, alguns deles então inéditos, da sua biografada.

- Há algum progresso na história dos explorados?

- A diferença entre os gregos e nós é que, se entre os gregos o patriotismo era o amor do cidadão pelas leis que garantiam a sua liberdade, entre nós é o amor do escravo pelo seu senhor. O homem é feito de tal maneira que aquele que esmaga não sente nada, e é aquele que é esmagado quem sente. Enquanto não nos pusermos do lado dos oprimidos, não nos podemos dar conta disso.

- Quando trabalhou como operária, que foi pior para si: o perigo e os sofrimentos físicos, a vivência da escravatura ou o facto de ter de aceitar a todo o momento não pensar, ser manipulada pelo pensamento de outrem, como se fosse um objecto?

- O facto capital não é o sofrimento, mas a humilhação. O sentimento da dignidade pessoal tal como ele foi fabricado pela sociedade é feito em estilhaços. É necessário forjar um outro… Reconquistei por meio da escravatura o sentimento da minha dignidade de ser humano.

- Uma das razões pelas quais desejou ser operária foi certamente porque esperava encontrar na fábrica a verdadeira fraternidade humana. E uma das coisas que sem dúvida a decepcionaram foi não encontrar lá a fraternidade que tinha imaginado. Os seus companheiros de desgraça competiam consigo para conquistarem as graças do patronato?

- Somente lá se sabe o que é a fraternidade humana. Mas há lá pouca, muito pouca. A maioria das vezes, mesmo as relações entre camaradas reflectem a dureza que domina tudo lá dentro. Na vida dura e brutal de uma fábrica, o espírito surge sempre como aquilo que é verdadeiramente uma coisa sobrenatural, um milagre, uma graça…

- Acreditou numa verdadeira Revolução, que acabasse com exploradores e explorados?

- Depois como antes de uma revolução pseudo-operária, os operários continuarão a obedecer passivamente, durante tanto tempo quanto a produção se fundamentar na obediência passiva. Quer o director esteja sob as ordens de um administrador-delegado representando alguns capitalistas, ou sob as ordens de um monopólio de Estado pseudo-socialista, a única diferença será que no primeiro caso a fábrica, por um lado, e a polícia, o exército e as prisões, por outro, se encontram em mãos diferentes, e no segundo caso nas mesmas mãos. A desigualdade não é portanto diminuída, mas acentuada.

- Não está a ser pessimista? Atacou os partidos políticos, mas restavam-lhe os sindicatos. Dir-se-ia que considerou os burocratas sindicais do topo como eternos vencedores que impediriam para sempre os sindicalizados das bases de realizar a luta pela unidade dos trabalhadores…

- A opressão capitalista não é, como pensava Marx, a última forma de opressão; uma nova forma desenha-se na nossa época, a opressão em nome da função, em nome da organização. Se me fosse demonstrado que se pode construir o socialismo num só país, entraria imediatamente no Partido Comunista e nunca sairia dele. Se o contrário me fosse demonstrado, combatê-lo-ia sem contemplações.

- Nunca aceitou a inevitabilidade de as centrais sindicais serem partidarizadas. Foi esse um dos motivos pelos quais repudiou o leninismo?

- O método de Lenine é bem característico e consiste em reflectir para refutar, sendo a solução conhecida antes da investigação. E por quem poderia então ser dada essa solução? Pelo Partido, como é dada ao católico pela Igreja. Um tal método de pensamento não é o de um homem livre.

- Encontra-se politicamente mais próxima de Marx ou de Gandhi?

- Toda a obra de Marx está impregnada de um espírito incompatível com o materialismo grosseiro de Engels e de Lenine. As insurreições do tipo da Comuna são admiráveis, mas falham (o proletariado é agora muito mais forte do que então, é verdade; mas a burguesia também). As do tipo Outubro 17 vencem, mas conduzem ao reforço da máquina burocrática, militar e policial. E a não-violência à maneira de Gandhi não me parece mais do que uma forma um pouco hipócrita de reformismo.

- Foram motivos ideológicos que a levaram a participar na Guerra de Espanha?

- Em Julho de 1936, eu estava em Paris. Não gosto da guerra; mas o que sempre me causou mais horror na guerra foi a situação dos que se encontram na retaguarda. Quando compreendi que, apesar dos meus esforços, não podia impedir-me de participar moralmente na Guerra de Espanha, quer dizer, de desejar todos os dias, a todas as horas, a vitória de uns, a derrota de outros, disse-me que Paris era para mim a retaguarda.

- Desde muito cedo, foi sensível aos problemas do colonialismo…

- Nunca pude pensar na Indochina sem ter vergonha do meu país…

-Depois dos problemas da cidadania, os da religião e da fé. Porque é que recusou sempre a conversão à Igreja Católica, de que se encontrava aparentemente tão próxima?

- Eu disse-me por vezes que, se somente fosse afixado às portas das igrejas que a entrada é proibida a quem quer que disponha de um rendimento superior a uma certa soma, pouco elevada, converter-me-ia logo… O que me faz medo, é a Igreja enquanto coisa social. Tenho medo desse patriotismo da Igreja que existe nos meios católicos. Houve santos que aprovaram as Cruzadas, a Inquisição.

- Estabeleceu estranhas – e por vezes chocantes – analogias entre os romanos e os hebreus. Porquê?

- Os romanos desprezavam os estrangeiros, os inimigos, os vencidos, os seus súbditos, os seus escravos. Os hebreus viam na desgraça o sinal do pecado e por consequência um motivo legítimo de desprezo; olhavam os seus inimigos vencidos como alvos do horror de Deus, o que tornava a crueldade permitida e mesmo indispensável. Romanos e hebreus foram admirados, lidos, imitados, citados todas as vezes que havia necessidade de justificar um crime, durante vinte séculos de cristianismo. A influência do Antigo Testamento e a do Império Romano, cuja tradição foi continuada pelo Papado, são em minha opinião as duas causas essenciais da corrupção do cristianismo.

- Escreveu que o catarismo foi na Europa «a última expressão viva da antiguidade pré-romana» e que, antes da conquista romana, um mesmo pensamento vivia, expresso sob diversas formas, «nos mistérios e nas seitas iniciáticas do Egipto e da Trácia, da Grécia, da Pérsia». Foi desse pensamento que Platão nos deixou a expressão mais perfeita?

- Foi desse pensamento que o cristianismo saiu; mas os gnósticos, os maniqueus e os cátaros parecem ter sido os únicos que lhe ficaram verdadeiramente fiéis.

- Sentiu que as suas ideias eram heréticas em relação a todas as ortodoxias?

- A fé não é incompatível com a dúvida, muito pelo contrário; a dúvida encontra-se em qualquer pensamento verdadeiro, é a marca da razão.

- Como se manifesta Deus no Mundo?

- Neste mundo, Deus cala-se, Deus não intervém.

- Podemos então considerá-la uma deísta?

- A noção de milagre é uma impiedade. E aqueles que acreditam entrar em contacto com Deus pela experiência mística cometem uma espécie de blasfémia. Destrói-se assim o divino.

- Acreditou na imortalidade da alma e na ressurreição da carne?

- A verdadeira imortalidade não é a imortalidade da alma individual, mas a imortalidade de Deus. A parte eterna da alma confunde-se com Deus na morte e já na vida; a parte da alma que não é eterna cai no nada com a morte e já na vida é nada.

- A sua amiga e biógrafa Simone Pétrement disse que a razão de crer na experiência mística de Simone Weil é a sua vida…

- Todos aqueles que possuem o amor do próximo e a aceitação da ordem do mundo, inclusive da desgraça, todos eles, mesmo se vivem e morrem ateus na aparência, são com certeza salvos. Aqueles que possuem perfeitamente essas duas virtudes, mesmo se vivem e morrem como ateus, são santos. Quando se encontra tais seres humanos, é inútil querer convertê-los. São todos convertidos, embora não visivelmente; foram regenerados pela água e pelo espírito, ainda que nunca tenham sido baptizados; comeram o pão da vida, ainda que nunca tenham comungado.

- Em que Deus se pode acreditar?

- Temos de crer num Deus que seja como o verdadeiro Deus em tudo, excepto no facto de que não existe, pois ainda não chegámos ao ponto em que Deus existe.

(APÓS ESTA RESPOSTA O ENTREVISTADOR FICA SEM FÔLEGO, ASSUME A DERROTA, RENDE-SE. NÃO SABE IR MAIS LONGE. PONTO FINAL.)