Fita de seda em volta de bomba (Frida Kahlo)

António Rego Chaves

Já há muito que o cadáver de Frida Kahlo (1907-1954) fora devorado pelas chamas do forno crematório quando núcleos feministas e críticos de arte decidiram outorgar-lhe o estatuto de génio incompreendido. O muralista Diego Rivera (1886-1957), que a própria chegou a considerar como «o segundo acidente mais trágico da sua vida», seu admirador, amante, marido, ex-cônjuge e outra vez marido, reeditando o «casamento de um elefante com uma pomba», soube descrever a obra da pintora em inspiradas fórmulas: «Ácida e terna, dura como o aço e delicada e fina como as asas da borboleta, adorável como um belo sorriso e profunda e cruel como a amargura da vida.» E André Breton não necessitou senão de dez palavras para «tudo» dizer: «é uma fita de seda em volta de uma bomba». Já a partir de hoje teremos uma imperdível ocasião de nos dar conta da pertinência destas apreciações na retrospectiva que tem por palco o CCB.

Frida conheceu o martírio desde a infância. Poliomielite aos seis anos, perna esquerda atrofiada, botas ortopédicas. Impiedosas, as crianças do bairro perseguem-na com uma cruel lengalenga, mil vezes repetida: «Frida perna de pau, Frida perna de pau!». Aos 18 anos, um brutal acidente de autocarro provoca-lhe fractura de duas vértebras, três fracturas da pélvis, onze fracturas no pé direito e uma profunda ferida no abdómen causada por um varão de aço que lhe entra pela anca esquerda e sai pela vagina. Sucessivos internamentos hospitalares, sucessivas cirurgias, sucessivos coletes de gesso, dores intermináveis. Indomável, senhora de uma vontade à prova de bala, recomeça a mover-se, inicia a actividade de pintora. Nada nem ninguém a faz vergar, mesmo quando, mais tarde, para enfrentar o sofrimento, se torna dependente do álcool, da marijuana ou da morfina. Apaixona-se por Diego Rivera, já então um artista mundialmente famoso, tal como outros dois grandes muralistas mexicanos seus coetâneos, David Alfaro Siqueiros e José Clemente Orozco. Defensor do povo e das suas raízes pré-colombianas, o truculento e ruidoso «Panzón» («Pançudo»), como Frida o apelida mal o conhece, sendo comunista e ateu, nunca lograria cair em graça junto da devota católica que era a mãe da jovem, quase 21 anos mais nova do que ele. Estudara pintura em Madrid, vivera bem vividos dez anos em Paris, viajara pela Holanda, pela Bélgica, pela Inglaterra, por Itália, pela União Soviética e aprendera a amar a arte de Cézanne, de Brueghel e de Goya, de Henri Rousseau e de Picasso.

Casam-se pela primeira vez a 21 de Agosto de 1929, tendo ela acabado de fazer 22 anos, ele com quase 43. Frida sabe já com o que pode contar. Diego confessara-se capaz de lealdade, mas não de fidelidade, era boémio, imparável bebedor de tequila e de pulque, compulsivo «homem de muitas mulheres» – e nunca deixará de o ser, nem mesmo recuando perante a sedução de Cristina, a irmã mais nova de Frida. Quanto a esta, também viverá sem constrangimentos uma frenética vida sexual extraconjugal, que teria incluído celebridades como Trotski, Breton, Nickolas Muray, Eisenstein ou Duchamp – além de um número indeterminado de mulheres. Chegará a declarar a um jornalista de Detroit, que a interroga acerca do que faz nas horas vagas: «Faço amor, senhor.» O repórter norte-americano não desarma: «Qual é o seu ideal de vida?». Resposta: «Fazer amor, tomar um banho, fazer amor, tomar um banho, fazer amor, tomar um banho… Quer que continue?»

Em 11 de Fevereiro de 1954, relata: «Amputaram-me a perna há seis meses, fizeram-me séculos de tortura e por momentos quase perdi a ‘razão’. Continuo a sentir vontade de me suicidar. Diego é que me detém, devido à minha vaidade de acreditar que ainda lhe posso fazer falta. Ele disse-mo e eu acredito-o. Mas nunca na vida sofri mais. Esperarei uns tempos…» Escreve Rauda Jamis, a autora desta biografia romanceada: «No entanto, a 2 de Julho, nada a detém quando decide participar numa manifestação comunista. Chovia. Diego empurrava a cadeira de rodas. De Frida já só restava o fantasma de si mesma, triste, esgotado. Não era mais do que dois imensos olhos negros num rosto desfigurado.» E, procurando decifrar a interioridade da artista, atribui-lhe este monólogo, aliás com base no seu «Diário»: «Quis acreditar que existem causas apesar de tudo mais importantes do que a minha invalidez, do que os meus tormentos. Causas superiores, ao lado das quais os meus males pouca coisa são. De qualquer forma, se o considerarmos com atenção, na sua deterioração, o meu corpo já não tem o menor interesse. Há que sacrificar o individual à grandeza das causas mais universais. Duvidar disso seria um crime contra a Humanidade. É assim que penso.»

Completa 47 anos a 6 de Julho. Sete dias depois, ao amanhecer, encontram-na morta na cama. Os amigos ajudaram-na a morrer? A hipótese não está ainda hoje posta de lado. Deixa-nos um terrível aceno de despedida, junto a um desenho que representa o anjo negro da morte: «Espero que a saída seja alegre – e espero nunca mais voltar.»

Teve direito a funeral oficial. Em dado momento, Diego Rivera lançou sobre o ataúde uma grande bandeira do Partido Comunista Mexicano, com a foice e o martelo. Como consequência, o director do Palácio Nacional de Belas-Artes, lugar onde se realizou a cerimónia, seria demitido das suas funções. Verdade é que Frida Kahlo – recordava há poucos meses Philippe Dagen no jornal «Le Monde» – execrava o capitalismo e o imperialismo da «Gringolândia», fora sempre fiel à memória do índio Emiliano Zapata e do mestiço Pancho Villa, aderira ao PC Mexicano e à IV Internacional, fizera parte desde o primeiro dia da Guerra Civil de Espanha do comité de apoio à República formado no seu país, seguira as ideias de Marx, Engels, Lenine, Estaline e Mao, pintara em 1954 um quadro que intitulara «O marxismo curará os doentes». Last but not least: revolucionária sem revolução, depois de terminar «Frida com Estaline», e no mesmo ano, deixara por concluir mais um retrato do tirânico líder soviético…

Rauda Jamis, «Frida Kahlo», Circe Ediciones, 2003 (19.ª edição), 359 páginas