John Gerassi («Entretiens avec Sartre»)

Um Sartre de A a Z

António Rego Chaves

De 1970 a 1974, o jornalista e professor universitário John Gerassi, nascido em França mas exercendo as suas actividades profissionais sobretudo nos Estados Unidos da América, levou a cabo duas dezenas de entrevistas a Jean-Paul Sartre, que viria a falecer em 1980. Abordamos aqui esse texto, facultando ao leitor, sob a forma de um dicionário de A a Z, a possibilidade de se inteirar de algumas das últimas opiniões de um dos mais importantes intelectuais do século XX, embora conscientes das limitações a que nos obriga o espaço de que dispomos. Assumimos o carácter muito pessoal da escolha das entradas que decidimos elaborar a partir da leitura dos extensos e intensos diálogos registados entre John Gerassi e o seu entrevistado:

Anfetaminas. «Mesmo que isso me mate amanhã, valeu a pena. Não dormi mais do que quatro horas por dia nos últimos quarenta anos. Se somarmos tudo, quer dizer que já tenho 90 anos de vida consciente.» (…) «A ‘Crítica da Razão Dialéctica’, escrevi-a enchendo-me de Corydrane [anfetaminas].»

Berlim, 1933. Hitler já tinha tomado o Poder, mas «as mulheres eram belas, ‘sexy’ e disponíveis. Portanto, a título pessoal, passei um ano formidável.»

Contradições. «Todas as contradições da sociedade, salientei-as ao notar as diferenças entre aquilo que as pessoas dizem e aquilo que elas fazem. Mas nunca combati ao lado do proletariado, nem sequer me encontrei lado-a-lado com ele, pois sempre levei uma vida fundamentalmente burguesa.»

Deus. «O fascismo, as guerras, são incidentes passageiros, ao passo que o acto de escrever é universal, no sentido em que nega qualquer outra forma de poder. O escritor nega a existência de Deus, mesmo quando afirma que escreve para Deus – ou, mesmo, que é Deus quem guia a sua mão.»

Egoísmo. «As crianças são egoístas, egocêntricas e egotistas, mas estão do lado dos pobres até que a propaganda do sistema, que de resto inclui os seus pais, faça deles conformistas e depois simples peças do sistema.»

Franceses. «Maus, egoístas, mesquinhos, arrogantes e muitos continuaram assim durante a Ocupação, colaboracionistas, a denunciar judeus para se apoderarem das suas casas, dos seus móveis, de quaisquer outras coisas.»

Guerra Mundial. «Eu não tinha nenhuma simpatia pelo sistema soviético [em 1954],mas sabia que a Rússia não desencadearia a Terceira Guerra Mundial. Disse então que devíamos apoiar os comunistas [franceses].»

Heidegger. «Fui muito mais influenciado por Husserl do que por Heidegger.» (…) «Só li ‘Ser e Tempo’ durante a guerra. Coisa incrível, encontrei-o na biblioteca do ‘stalag’ onde estava prisioneiro.»

Inferno. «O inferno é a atomização, a incomunicabilidade, o egocentrismo, a sede de poder, de riquezas, de glória. O paraíso, pelo contrário, é muito simples – e muito duro: consiste em preocuparmo-nos com os outros.»

Judeus e árabes. «A esquerda israelita não tem nenhum poder. Descobri [em 1973] que a maior parte dos israelitas é reacionária e racista.»

Kanapa. «Precisava de um Igreja, encontrou-a no Partido Comunista. E quando eles lhe disseram: prova-nos a tua lealdade atacando Sartre, fê-lo.»

Literatura e filosofia.«Sempre concebi os meus romances e peças de teatro como uma aplicação concreta da minha filosofia. Ou a minha filosofia como uma maneira de pôr em ordem, teoricamente, o que os meus romances e as minhas peças afirmavam por meio de situações individuais.»

Morte. «Saber que se vai morrer significa que, quando chegamos a uma certa idade, não poderemos ver as consequências dos nossos actos.»

Nobel da Literatura (atribuído a Jean-Paul Sartre em 1964). «Tentei recusar que a minha obra antiburguesa fosse recompensada por honras burguesas.»

Oposição ao nazismo. «Poder-se-ia sustentar que não foi senão em 1943, com o avanço dos russos na Alemanha, a invasão da Sicília pelos Aliados em Julho e o seu triplo desembarque na Itália em Setembro que todos os colaboracionistas de repente se transformaram em opositores ao nazismo.»

Política e moral. «Não me tornei politizado senão no ano passado [1971], quando compreendi o significado político [e não apenas moral] de 1968.

Queneau. «Era verdadeiramente um romancista de primeira ordem e no entanto foi quase ignorado por causa do seu passado de extrema-esquerda.»

Revolução. «É o ódio à injustiça e o amor pelos companheiros de sofrimento que fazem o revolucionário. (…) «Revoltamo-nos por ódio, tornamo-nos revolucionários pela razão. Os dois ao mesmo tempo.»

Solidão. «Só um artista pode compreender que está condenado a ser livre, e que isso quer dizer estar condenado a viver como um ser solitário.»

Terror. «Para ter êxito, uma revolução deve ir até ao fim. Não se põe a questão de parar a meio-caminho. A direita usará sempre o terror para lhe travar a marcha, por isso a revolução deve recorrer ao terror para a deter.»

URSS. «Quando lá cheguei, depressa percebi que também eles mentiam.»

Violência institucional. «O facto de os Estados disporem de forças policiais e de exércitos torna-os violentos por definição, mesmo que nunca se sirvam dos ‘chuis’ (sic, ‘flics’) ou das forças militares para impor a sua vontade.»

X. Esta letra poderia simbolizar o que de mais importante nos legou Sartre – não um sistema de certezas, mas um quase infinito número de incógnitas. Como escreve John Gerassi, no «Adeus» que fecha o livro: «Nos átrios policiados das universidades, nos jardins cuidadosamente arranjados da burocracia, a filosofia de Sartre não tem um lugar. Ele colocou demasiadas questões difíceis, sem lhes dar respostas paliativas permanentes.»

Zola. «É verdade [que Balzac era bem mais revolucionário do que Zola, como explicou Lukács]. Zola era essencialmente um reformista. Dá-se mais dinheiro aos mineiros, um salário melhor, e tudo fica resolvido para eles.»

John Gerassi, «Entretiens avec Sartre», Grasset, 2011, 527 páginas