Agonias e passamentos (Michel Schneider)

António Rego Chaves

Dizia Platão que a filosofia é uma meditação sobre a morte. Entendamo-nos: ela não será apenas uma meditação sobre a morte, mas é difícil, senão impossível, concebê-la sem tal preocupação. Porém, a filosofia está longe de deter o monopólio do tema: a religião, a arte e a literatura sempre trilharam os seus caminhos próprios no sentido de se confrontarem com esse «mistério». Recorde-se, para só citar um exemplo, André Gide, no «Diário», ao narrar a agonia, o passamento e o funeral de Charles-Louis Philippe, o autor de «Bubu de Montparnasse»: sepultado o amigo, este assume o estatuto de alguém que se tornou insubstituível para os que o leram, os que com ele conviveram, os que o amaram. O cadáver transfigura-se em símbolo do «homem essencial». Nota o filósofo Ferrater Mora que tais testemunhos literários são extremamente variados. «Mas, na medida em que têm algo em comum, parecem ser isto: a descrição da experiência de uma morte alheia constitui com frequência o ponto de partida para uma reflexão sobre o problema do sentido de todas as mortes humanas.» (…) «Em todos os casos, a descrição do morrer de um indivíduo ou de um tipo de indivíduo é tomada como modelo para a compreensão da índole essencial do morrer humano. Não é surpreendente, pois, que, para além dos pormenores, as descrições – ou melhor, a reflexão resultante delas – coincidam em pontos capitais.» Persiste, no entanto, a interrogação fundamental, para agnósticos e ateus: a morte conferirá todo o sentido à vida (Heidegger), ou será que lhe retira qualquer espécie de sentido (Sartre)?

«Morts imaginaires», do escritor e crítico literário Michel Schneider, agora editado em livro de bolso, foi galardoado com o Prémio Médicis para o ensaio em 2003. Não se trata apenas de uma demonstração de sólida erudição ou de mais uma subtil reflexão sobre a morte: acima de tudo, é a vida de trinta e seis autores que se ilumina ao acompanharmos os seus derradeiros momentos e escutarmos as suas «ultima verba», reais ou imaginárias. Eis os seus nomes, por ordem cronológica da morte: Montaigne, Pascal, Madame de Sévigné, Julie de Lespinasse, Voltaire, Madame du Deffand, Kant, Benjamin Constant, Goethe, Puchkine, Stendhal, Chateaubriand, Balzac, Heine, Thomas De Quincey, Alexandre Dumas, Flaubert, Maupassant, Tchekhov, Marcel Schwob, Jean Lorrain, Tolstoi, Rilke, Catherine Pozzi, Freud, Walter Benjamin, Marina Tsvetaïeva, Stefan Zweig, Hermann Broch, Robert Walser, Dorothy Parker, Alexandre Vialatte, Dino Buzzati, Vladimir Nabokov, Jean Rhys e Truman Capote. O leitor não é «obrigado» a ler o livro pela ordem indicada. Se muito o atrai Rilke comece por Rilke, se Freud lhe desperta grande curiosidade comece por Freud, se Tchekhov, ou Walter Bejamin ou Truman Capote o fascinam comece então por Tchekhov, ou Walter Benjamin ou Truman Capote. Depois volte a «pegar» na obra. Verá que não se arrepende de privar com estes trinta e seis estimabilíssimos fantasmas.

Adverte Michel Schneider: «É preciso ler os livros que estes escritores escreveram: é lá que a sua morte é narrada. Um escritor é alguém que morre toda a sua vida, em longas frases, em pequenas palavras.» Georges Bernanos avalizaria esta asserção: «Porque se diz ‘progredir na vida?’ É na morte que se progride, é a nossa morte que aprofundamos sem cessar, tal como uma obra que tarda em chegar». Montaigne sentenciava: «Quem ensinasse os homens a morrer ensiná-los-ia a viver». E terá sempre presente a morte do seu maior amigo, autor do «Discurso da Servidão Voluntária»: o capítulo XXIX do Livro I dos «Ensaios» não é mais do que a recolha dos vinte e nove sonetos de La Boétie. Durante trinta anos, Montaigne escreveu a esse morto, e acerca dessa morte que tinha sido também o fim de metade de si próprio. Quanto à outra metade, diria: «Contento-me com uma morte recolhida em si, tranquila e solitária, toda minha.» O seu desejo não se realizaria. Pascal, esse sim, morreria só, mas conservando bem colado ao corpo o famoso «Memorial», precioso pedacinho de papel rabiscado numa noite de Novembro de 1654 e logo cosido na algibeira, qual passaporte capaz de o conduzir sem mais delongas à vida eterna…

Aliás, foi o autor dos «Pensamentos» quem denunciou de forma lapidar a função da futilidade como entrave à meditação sobre a morte: «Divertimento. – Não tendo os homens conseguido acabar com a morte, a miséria, a ignorância, tiveram a ideia de, para se tornarem felizes, não pensar nelas.» Séculos passados, Vladimir Jankélévitch, bem atento à lição, glosaria brilhantemente este discurso: «Os reumatismos e os impostos são uma verdadeira esmola para o homem ansioso: como simples eufemismos, servem para desviar a conversação, mantêm a tagarelice que nos impede de pensar na nossa miséria, localizam num determinado ponto a angústia difusa.» (…) «O vivente decide, para tornar a sua vida tolerável, manter-se superficial e aproximativo, continuar à flor do destino, não ir ao fundo das coisas: porque se pensasse a fundo na verdade da morte certa e se concebesse o perigo deixaria de poder viver.» Em suma, a maioria dos humanos opta por não tomar a sério a preocupação com a morte e refugia-se nessa espécie de bovina modorra a que Max Scheler chamou «sinecura metafísica». Um Hermann Broch, ao observar à lupa os «sonâmbulos», e um Dino Buzatti, no seu «Diário», não desdenhariam de subscrever tais concepções.

Voltemos ao livro de Michel Schneider. Posicionando-se nos antípodas da literatura «light», embora recusando a enfadonha gravidade académica que torna insuportáveis todos os saberes, consegue conduzir-nos – à semelhança de Marcel Schwob em «Vidas Imaginárias» – até à corrente de consciência das personagens durante a sua decadência física ou psíquica e a sua agonia, a partir do conhecimento profundo que possui da vida e obra dos autores escolhidos. Trata-se, pois, de passamentos ficcionados – mas talvez bem mais verdadeiros do que quaisquer outros que nos possam ser revelados pelo registo nu e cru de factos. Tal parece ser o grande mérito deste ensaio admirável.

Michel Schneider, «Morts imaginaires», Collection Folio, Gallimard, 2004, 410 páginas