David Hume («Tratado da Natureza Humana»)

David Hume ou a honra (perdida) da metafísica

Enfim, «no nosso português», o Tratado da Natureza Humana. Já não era sem tempo…

António Rego Chaves

O filósofo escocês David Hume (1711-1776) foi, sem dúvida, um dos mais eminentes nascidos na Europa insular. Pena que no restante espaço do Velho Continente nem sempre lhe tenha sido dada entre os seus pares a atenção devida, apesar de Immanuel Kant e Arthur Schopenhauer.

A obra agora publicada pela Fundação Gulbenkian, na sua melhor tradição de divulgação de alguns dos mais importantes textos da História da Filosofia – o Tratado da Natureza Humana – constitui a mais significativa contribuição de David Hume para o pensamento gnosiológico ocidental. Editadas quando o autor tinha apenas 28 anos, estas páginas acutilantes trouxeram-lhe dissabores sem conta, sob as acusações de cepticismo, infidelidade, heresia e ateísmo, como salienta João Paulo Monteiro no prefácio que redigiu para a presente edição, recordando também que Bertrand Russell o considerava o maior filósofo de língua inglesa de todos os tempos.

«É tradicional qualificar a filosofia humeana, a do Tratado e a das outras obras – escreve João Paulo Monteiro – como um ‘empirismo’, termo que o autor jamais usou. Em sentido estrito esta tradição justifica-se apenas na medida em que o termo designe a tese da raiz experimental do conhecimento, da incapacidade da razão para por si mesma gerar saber acerca do mundo – na linha de Bacon, Hutcheson, Locke e Berkeley. Mas em outros sentidos mais ambiciosos é simplesmente um erro classificar sumariamente como empirista a filosofia de Hume.»

O Tratado contém três Livros, consagrado o primeiro ao entendimento, o segundo às paixões e o terceiro à moral. É na quarta parte do Livro I, intitulada O sistema céptico e outros sistemas de filosofia – onde são abordados temas como a legitimidade da dúvida, a incerteza fundamental do saber humano, a identidade pessoal e a imaterialidade da alma – que se encontra o mais polémico conteúdo do Tratado, que muito influenciou Immanuel Kant e o despertou, tal como a Investigação sobre o Entendimento Humano (1748), do seu pachorrento «sono dogmático». A lúcida e penetrante crítica do conceito de causalidade – Deus seria mesmo «causa do mundo»? – por parte de David Hume conduziria o autor da Crítica da Razão Pura ao conceito de «juízo sintético a priori», fulcral na sua teoria do conhecimento e afastando-o ad nauseam de Leibniz, Descartes ou Malebranche.

A quarta parte do Livro I do Tratado causaria grande escândalo em Edimburgo e em Glasgow, a partir de 1740. Nela, David Hume ousa afirmar que «não podemos avançar um passo no sentido de estabelecer a simplicidade e imaterialidade da alma sem preparar o caminho por um perigoso e irremediável ateísmo». E pronuncia aquilo a que chama a «decisão final» sobre o conjunto do problema: «A questão relativa à substância da alma é absolutamente ininteligível; nenhuma das nossas percepções é susceptível de união local, quer com o que é extenso, quer com o que é inextenso, pois algumas são de uma espécie e outras de outra; e visto que a conjunção constante de objectos constitui a essência mesma da causa e do efeito, a matéria e o movimento podem frequentemente considerar-se como causas do pensamento, tanto quanto possamos ter uma noção desta relação.»

Resumindo: todos os argumentos metafísicos a favor da imortalidade da alma são igualmente inconcludentes. Atrevimento dos atrevimentos, o brilhante e corajoso «terrorista» escocês atreve-se a recomendar a dúvida filosófica – não a dúvida metódica cartesiana, que deixa tudo na mesma, mas a radical, isto é, a metafísica – afirmando que não terá qualquer escrúpulo «em dar-lhe preferência sobre a superstição de qualquer espécie ou denominação». Advertência aos incautos: «Em geral os erros da religião são perigosos; os erros filosóficos são apenas ridículos.»

Em 1763, Immanuel Kant estabelecerá: «É absolutamente indispensável que nos convençamos da existência de Deus; é menos necessário que a demonstremos.» Comenta um grande especialista da sua obra, Joseph Maréchal: «Podemos ver aqui, se não nos enganamos, um primeiro anúncio do dogmatismo moral da Crítica da Razão Prática.» Que é como quem diz: «um passo atrás, dois em frente» (ai, Lenine!) no sentido do Deus dos cristãos…

Ora o problema da omnipotência e da Providência divinas preocupará expressamente David Hume nos célebres Diálogos sobre a Religião Natural (em contraposição a «religião revelada»), na sua qualidade de «geógrafo do espírito humano», como lhe viria a chamar Kant. E a sua conclusão será inequívoca: «As velhas questões de Epicuro continuam sem encontrar resposta. Deus quer prevenir o mal, mas não pode? Então é impotente. Pode, mas não quer? Então é malévolo. Pode e quer? Então donde vem o mal?»

O impasse racional dir-se-ia insuperável. Restaria apenas o caminho do sentimento, como, mais tarde, viriam a reconhecer filósofos aparentemente tão distantes como Scheleiermacher, Kierkegaard ou William James. Só que a – ao contrário da razão – não está ao alcance de quase todos os chamados «filhos de Deus»…

David Hume, «Tratado da Natureza Humana», Fundação Calouste Gulbenkian, 2001, 736 páginas

Publicado no «Diário de Notícias» em 8.04.2002