Bourdieu, ou a «ciência plebeia»

António Rego Chaves

Pierre Bourdieu (1930-2002) inicia este texto com uma frase que poderá ser entendida como um escrupuloso aviso ao leitor de memórias: «Isto não é uma autobiografia». Tudo depende, porém, do que entendermos por autobiografia. Se formos à procura de algo semelhante às «madalenas» de Proust, não, de facto não depararemos aqui com o intimismo de um frágil menino de sua mãe. O autor de «A Miséria do Mundo» vai-se assumindo, devagar, devagarinho, a passos de veludo, como um camponês que desembarcou em Paris, viu e venceu no meio universitário, mas que nunca abdicou nem abdicará das suas raízes. Mais ainda: como alguém que declarou uma guerra sem quartel à «racionalidade de contabilistas» que encontrou e adoptou, bem convicto das suas razões, a «racionalidade humana». Poupando palavras, melhor, utilizando as suas num artigo publicado no jornal «Le Monde» em 1998: era «por uma esquerda de esquerda». Ou seja, considerava que «o horizonte do movimento social é uma internacional da resistência ao neoliberalismo e a todas as formas de conservadorismo.» E dizia que a televisão «oculta, mostrando», isto é, que omite o essencial e só nos mostra o acessório; e que os jornais facilitam a «circulação circular da informação», pois uniformizam – nivelando por baixo – em nome de uma «sagrada» livre concorrência. Por isso chegou a ser acusado por um seu adversário de «terrorismo sociológico». Por isso e porque lançou invectivas como a seguinte sobre os omnipotentes «barões» dos media: «Esse poder simbólico que, na maioria das sociedades, era distinto do poder político ou económico, encontra-se hoje reunido nas mãos das mesmas pessoas que detêm o controlo dos grandes grupos de comunicação, quer dizer, o conjunto dos instrumentos de produção e de difusão dos bens culturais.»

Fiel à nobre exigência de intervenção dos intelectuais na sociedade em que vivem, foi impiedoso no seu julgamento dos pragmáticos «socialistas» que ocuparam o Poder a partir de 1981, após a eleição de François Mitterrand para a Presidência da República: «Conduziram à demolição da crença no Estado e à destruição do Estado Providência empreendida nos anos 70 em nome do liberalismo.» E concluía assim uma sua nada académica proclamação urbi et orbi: «Não existe democracia efectiva sem verdadeiros contra-poderes críticos. O intelectual é um deles, e de primeira grandeza.»

«Esboço Para Uma Auto-Análise» foi redigido entre Outubro e Dezembro de 2001, nas vésperas de o autor morrer, em Janeiro de 2002. Pierre Bourdieu defende ao longo de todo o texto a sua generosa «ciência plebeia»: «Compreendi que tinha entrado para a sociologia e a etnologia devido, em parte, a uma rejeição profunda do ponto de vista escolástico, um princípio de uma arrogância e de uma distância social em que nunca pude sentir-me à vontade e para a qual a predisposição advém, sem dúvida, da relação com o mundo associada a certas origens sociais. Esta atitude era-me desagradável, e já há muito tempo, e a recusa da visão do mundo associada à filosofia universitária da filosofia contribuiu muito, sem dúvida, para me orientar para as ciências sociais e sobretudo para certa maneira de as praticar. Mas iria descobrir muito rapidamente que a etnologia, ou, pelo menos, a maneira específica de a conceber encarnada por Lévi-Strauss e que a sua metáfora do ‘olhar distanciado’ sintetiza, permite também, de maneira bastante paradoxal, manter à distância o mundo social e mesmo ‘denegá-lo’, no sentido de Freud, e, desde modo, estetizá-lo.»

Recordando a sua «troca» da filosofia universitária pelo trabalho nos bairros de lata, revela: «Um pouco por graça, considerava-me muitas vezes líder de um movimento de libertação das ciências sociais contra o imperialismo da filosofia. Todavia, não era mais indulgente com os sociólogos que viam na sua passagem pelos Estados Unidos uma espécie de viagem iniciática do que com os aprendizes de filósofos que, dez ou quinze anos antes, se precipitavam para os arquivos de um Husserl cujas obras essenciais permaneciam ainda, em grande parte, inéditas em francês.»

Acerca das motivações mais profundas do estilo peculiar das suas investigações, do tipo de problemas que lhe interessavam e da sua maneira de os abordar, o autor procura encontrar o fio da meada e revela-nos o segredo seu trajecto: «Talvez o facto de provir das ‘classes’ que alguns gostam de chamar ‘modestas’ desenvolva virtudes que os manuais de metodologia não ensinam: a ausência de qualquer menosprezo pelas minúcias da empiria, a atenção aos objectos humildes, a recusa das rupturas soantes e das apresentações espectaculares, o aristocratismo da discrição que conduz ao desprezo pelo virtuosismo e pelo brilhantismo recompensados pela instituição escolar e, hoje, pelos meios de comunicação social.» (…) «O mundo intelectual, que se julga muito livre de conveniências e convenções, sempre me pareceu cheio de grandes conformismos, que agiram sobre mim como forças repulsivas.» (…) «O sentimento de ambivalência em relação ao mundo intelectual está na origem de uma dupla distância de que poderia dar inúmeros exemplos: distância em relação ao grande jogo intelectual à francesa, com as suas petições mundanas, as suas manifestações elegantes e os seus prefácios para catálogos de artistas, mas igualmente em relação ao grande papel do professor, envolvido na circulação circular dos júris de tese e dos concursos, nos jogos e nas lutas do poder sobre a sua reprodução; distância em matéria de política e de cultura, em relação quer ao elitismo quer ao populismo.»

Em Março de 2001, durante um debate realizado em Londres, o grande sociólogo foi claro ao sustentar que não pode existir ciência sem compromisso, nem compromisso sem ciência, isto é, que não há verdadeiro investigador que não seja um político, nem verdadeiro político que não seja um investigador. Pierre Bourdieu terá sido um dos poucos intelectuais da sua geração que, à semelhança dos gigantes da Enciclopédia, conseguiram desempenhar brilhantemente ambas as funções na sociedade francesa.

Pierre Bourdieu, «Esboço para uma Auto-Análise», Edições 70, 2005, 119 páginas