Sartre, um homem livre

António Rego Chaves

Cem anos passados sobre o seu nascimento, vinte e cinco anos depois da sua morte, Sartre ainda incomoda inúmeras cabeças – sobretudo entre os docentes da Sorbonne. Que o confirme quem ler o «dossier» a que foi dado o título «Sartre – Portrait sans Tabou», inserido na prestigiada revista «L’Histoire» deste mês de Fevereiro de 2005.

O incómodo verifica-se em dois planos bem distintos. O primeiro detecta-se logo nas palavras que apresentam o trabalho dos «especialistas» – quase todos de (boa?) cepa universitária –, que se debruçam, diga-se de passagem, mais sobre a vida do que sobre a grandiosa obra da personagem: «O intelectual “engagé”, a grande figura da Resistência, o defensor intransigente dos direitos da pessoa, o teórico da liberdade, o campeão do amor livre… Este retrato de Jean-Paul Sartre resiste à análise dos factos, das tomadas de posição e dos escritos póstumos?» A pergunta insinua já a resposta que, com razão ou na falta dela, se vai dar: um prudente «nim», apoiado numa massa de pretensas «revelações» de variadas proveniências e animosidades que não poucas vezes roçam a sordidez de uma imprensa infestada pelo vírus da tablóidização.

O segundo plano do incómodo veicula uma mal disfarçada insolência: ao contrário do conceituado historiador Michel Winock, que aliás desempenha o papel mais importante neste trabalho e procura, num evidente mas talvez malogrado esforço, alcançar um equilíbrio mínimo na apreciação do pensamento e da acção de Sartre, alguns articulistas não conseguem ocultar uma persistente intenção de denegrir a imagem do «homem-século» que cometeu o nefando crime de pretender conciliar o exercício da liberdade individual com a construção de uma sociedade sem classes. E é no mínimo curioso verificar que ainda hoje muitos reagem a Sartre como se ele ainda existisse e quisessem, vestindo a sábia pele de edipozinhos (de)formados pela Sorbonne – onde, aliás, Sartre sempre recusou doutorar-se –, assassinar um mal-amado «pai» que não pára de estrebuchar, mesmo depois de morto e sepultado. Nisso, aliás, pode descortinar-se alguma lógica, porque o seu exemplo ainda continua a provocar ruidosos rangeres de dentes e a pôr em xeque muitas das opções do nosso tempo, quer no âmbito das vidas privadas, quer no campo das escolhas ideológicas.

Destaquemos, pois, no presente «dossier», dois textos de Michel Winock («Sartre enganou-se sempre?» e «Resistente ou impostor?»), bem como a entrevista de Jacques Colette, autor de um recente livrinho da colecção «Que sais-je?» consagrado ao existencialismo. Deixemos de lado, nomeadamente, lugares-comuns, bisbilhotices e polémicas sobre a sua família, os altos e baixos do seu relacionamento com Raymond Aron, Paul Nizan, Emmanuel Mounier, Albert Camus, Merleau-Ponty ou François Mauriac, a «adopção» sem condições do poeta-ladrão Jean Genet, os pormenores da vida sexual com e sem Simone de Beauvoir, a imensa popularidade e o chorrilho de insultos e asneiras de que foi alvo. Tudo isso terá de ser mencionado em qualquer biografia de Sartre, ninguém o negará, mas nada disso é relevante para compreender «O Ser e o Nada» ou a «Crítica da Razão Dialéctica», «A Náusea» ou «Os Caminhos da Liberdade», «A Porta Fechada» ou «As Mãos Sujas».

O seu comportamento não foi heróico durante a Resistência? Decerto que não, mas não é menos exacto que ninguém o poderá classificar como um colaboracionista. A verdade é que, em Abril de 1941, depois de ter sido feito prisioneiro e libertado, constituía o grupo «Socialismo e Liberdade», com o objectivo de resistir a Vichy e ao nazismo. Viveu durante os anos da Ocupação demasiado concentrado na sua obra literária e filosófica, descurando a participação na Resistência? Seria difícil negá-lo, embora «As Moscas», peça de teatro representada em 1943, tenha sido encarada na época como uma corajosa crítica ao regime de Vichy. Quanto à sua posterior vida política, ninguém melhor do que John Gerassi a sintetizou: «Sartre fez mais do que qualquer outro intelectual no mundo para denunciar a injustiça e para apoiar os condenados da terra.» Nem católico nem comunista ortodoxo, será atacado por todos os lados, incluindo o do PCF, que não perdoou ao seu irrequieto «compagnon de route» a independência intelectual de que nunca abdicava. Elevará a sua voz contra a execução de Ethel e Julius Rosenberg, tomará posição contra as guerras da Indochina e da Coreia, pela independência da Argélia, contra as invasões da Hungria e da Checoslováquia. Presidirá em 1967 ao famoso «Tribunal Russell» para julgar os crimes de guerra norte-americanos no Vietname, tomará o partido do movimento estudantil de Maio de 68, venderá nas ruas de Paris o proibido jornal esquerdista «La Cause du Peuple», visitará na prisão Andreas Baader, líder da «Fracção Exército Vermelho». E, incansavelmente, enquanto os olhos lho permitiram, continuará a escrever a sua obra de intervenção, até ao décimo e último volume das «Situações».

«Era um grande filósofo?», pergunta Michel Winock a Jacques Colette, emérito professor da Sorbonne. A muito custo, lá confirmamos, pela jesuítica fala do emérito, que Sartre era romancista e filósofo. Que muito aprendeu com Descartes, Husserl e Heidegger. Que se «posicionou» no campo filosófico ao publicar «O Ser e o Nada», embora tenha sido muito criticado por Jean Wahl e Gabriel Marcel. E, «last but not least», que a grande novidade da obra reside na profusão das «ilustrações existenciais»: «tudo o que é a relação com o outro, a vergonha, a sexualidade, o amor e, sobretudo, a análise da má-fé, isto é, da mentira que se faz a si mesmo para fugir da sua própria liberdade e responsabilidade». Além disso, o que Husserl descobrira, mas de forma extremamente formal, nas análises da intersubjectividade, foi ali encenado. «O talento do escritor, senão do dramaturgo, é colocado em “O Ser e o Nada” ao serviço de uma demonstração filosófica». E Marx? «Com a experiência da guerra Sartre descobre a amplitude da dimensão histórica da existência humana.» Mas não seria nunca «totalmente marxista», porque «não é um pensador do fim da história» (!), perfilando-se como um (pequeno ou grande?) «filósofo da liberdade».

Do exposto se conclui que ainda não soou a hora de os respeitosos macróbios incrustados na Sorbonne acolherem de braços abertos o pensamento daquele que muitos consideram, na Europa e nos EUA, o maior filósofo francês do século XX...

«L’Histoire» n.º 295, «Sartre – Portrait sans Tabou», Fevereiro de 2005, 114 páginas