Um homem incorruptível (Alexandre Herculano)

António Rego Chaves

De Alexandre Herculano disse Oliveira Martins, seu grande admirador e adversário ideológico: «A palavra que o retrata é o Carácter, porque nele a vida moral eram uma e única: o contrário do céptico, não raro santo, o próprio do estóico, não raro obtuso.» Acentuava ainda o autor de «Portugal Contemporâneo» que «os desenganos do mundo o degredaram para o exílio, não como um mártir, mas como um homem que, protestando sempre, se não converte, nem se corrompe.» E recordava o que, segundo Bulhão Pato, disse à hora da morte: «Isto dá vontade de a gente morrer!»

O «isto» que dava vontade de morrer, que seria? Aventa Oliveira Martins: «A Liberdade naufragada, a vida vivida em vão, a Pátria miserável, os homens cada vez mais rasos!». António José Saraiva tinha decerto bem presente este texto quando, em 1949, terminou a redacção do ensaio reeditado em 1977. Mas o autor estava muito mais interessado no escritor, no historiador e no político Alexandre Herculano do que no homem incorruptível que dava pelo mesmo nome. Talvez por isso não julgasse necessário dedicar a este último mais do que meia dúzia de frases, sem cair nos «exageros» de Oliveira Martins, que lhe consagra uma mão-cheia de páginas no capítulo «A Regeneração» do seu «Portugal Contemporâneo».

Mas, se o historiador cujo bicentenário do nascimento assinalamos foi talvez o maior que nos aconteceu (basta referir a «História de Portugal» e a «História da Origem e Estabelecimento da Inquisição em Portugal»), se o poeta e o romancista deixaram marca indelével no Romantismo, se o autor dos «Opúsculos» nos legou dezenas de textos que ainda hoje não perderam vivacidade e pertinência, o Homem a todos eles supera pelo exemplo quase sem par na sua geração. Como afirmou Joel Serrão, «liga-se ao tipo nacional de ‘antes quebrar que torcer’ (ou seja, a intransigência moral ante o curso das coisas) e inscreve-se numa família de espíritos de eleição a que pertenceram, entre outros, Sá de Miranda, Mouzinho da Silveira e Antero de Quental» e da qual fez também parte, no século XX, um António Sérgio.

Para Alexandre Herculano, o liberalismo português teria de assentar na moderada Carta Constitucional, outorgada por D. Pedro IV em 1826, e não na «radical» Constituição de 1822. Sintetiza António José Saraiva: «Se a Carta existia, se ela tinha custado rios de sangue, porque não aproveitá-la, tirar dela o melhor partido, nem que fosse apenas o pretexto para outra construção que a ultrapassasse? Factos, não teorias – eis o que Herculano pedia em política. E era assim levado a exalçar a ditadura de D. Pedro, e as reformas de Mouzinho [da Silveira], esse Sólon português, déspota esclarecido, que no silêncio do gabinete, de cima para baixo, derrubara o imponente e musgoso edifício do antigo regime. Estes factos opunha-os ele às teorias bem-intencionadas de 1820. E para que se visse bem que também isto não é um sistema, quando outro grande homem, de partido oposto ao seu, Passos [Manuel], criou novos factos dando com eles um avanço na transformação da sociedade portuguesa, Herculano aplaudiu-o. E mais tarde, a este núcleo constituído pela Carta, pelas reformas da ditadura e pelas do setembrismo, acrescentou Herculano uma construção que as circunstâncias lhe mostraram necessária: o municipalismo. Herculano, em presença da instabilidade do liberalismo português, onde se sucedem as ditaduras palmelista, setembrista, cabralina, saldanhista, rodriguista, fontista, disfarçadas ou claras, pensou que elas provinham do excessivo poder da oligarquia político-económica sobre um povo politicamente inculto e inconsciente, e viu como remédio o governo directo de uma federação de municípios, caminho para uma educação política das massas.»

Depois de questionar a coerência de Alexandre Herculano – que, sabe-se, não pensou sempre da mesma forma, assim como a realidade que conheceu e enfrentou não foi sempre a mesma – conclui António José Saraiva: «Herculano não se enganava ao sentir uma coerência essencial entre o conteúdo do seu pensamento de 1840 e de 1870. Na realidade, não foi tanto ele que mudou como a sua posição relativamente aos acontecimentos. Entre a sua doutrina religiosa de 1840 e a de 1870 interpõe-se a recuperação parcial do Clero em Portugal e um renovo de vitalidade manifestado nos ataques infelizes à História de Portugal em 1850 e na tentativa de introdução das ordens religiosas; e além disso a condenação definitiva do catolicismo liberal por Pio IX e a aliança da reacção religiosa com a reacção política em França e na Áustria. Isto explica o aparente contraste entre a campanha de recristianização da primeira época e a campanha anticlerical da segunda. Entre a sua doutrina política de 1836 e a de 1856 medeia toda a experiência do cabralismo, e uma modificação profunda da estrutura económica e social portuguesa, tornada patente a partir de 1851. E medeia ainda a revolução de 48, a sua repressão sangrenta, a ditadura de Napoleão II, a reconstituição ou consolidação do feudalismo na Europa Oriental. Isto explica a transição do cartismo de 1836 para o progressismo histórico de 1856. Aquilo que em 1836 estava à sua esquerda passa a estar à sua direita, aquilo que estava com ele deixa de estar com ele, aquilo que ele combatia vem a encontrar-se seu aliado.»

Pode assim o autor intuir que o voluntário isolamento do grande homem em Vale de Lobos foi «o protesto do liberalismo na sua mensagem essencial, que engloba no Terceiro Estado o conjunto das classes trabalhadoras, contra o pseudoliberalismo que dá ao capital uma função autónoma e faz suceder à aristocracia feudal uma outra também exploradora» e que «este liberalismo, alma da revolução portuguesa de 1832 a 1834, constitui afinal o essencial do pensamento de Herculano».

Eis várias lições a reter neste bicentenário vivido em pela selva neoliberal.

António José Saraiva, «Herculano e o Liberalismo em Portugal», Livraria Bertrand, 1977, 271 páginas