A Solidão (Mensário «Le Magazine Littéraire»)

Solidão, solidões

António Rego Chaves

Falar de solidão em Julho/Agosto, para tantos um tempo de férias, talvez não seja despropositado: a maioria das pessoas descansa, «distrai-se», não é obrigada a «nada» – e talvez se sinta (ainda?) mais só. Como o trabalho do escritor consiste (muitas vezes entre várias tarefas que visam assegurar a sua subsistência) em escrever para ser lido, não nos espanta a mágoa de um Ovídio, exilado: «Estou sozinho no fim do mundo/numa praia abandonada/ a terra desapareceu.» (…) «Escrever sem ser lido é dançar na escuridão.»

Não só Ovídio se queixava de não ser lido: para muitos outros poetas a questão foi (ou é), também, ser ou não ser…lido. O problema, dizem-no porém filósofos de todos os tempos e espaços, seria, no entanto outro, e Rousseau formulou-o com clareza em boa parte da sua obra, sobretudo n’ «Os Devaneios do Caminhante Solitário»: consiste em o indivíduo se sentir excluído da comunidade. Assim sendo, foge, isola-se mais, resvala para a misantropia. Dirá: «Apertado de todos os lados, mantenho-me em equilíbrio, porque, já não me ligando a nada, não me apoio senão em mim.»

Os Românticos foram, sabe-se, os grandes cultores da solidão. Lord Byron dava o tom, logo nos inícios do século XIX, em «Childe Harold’s Pilgrimage»: «Se é na sociedade que aprendemos a viver, é a solidão que deveria ensinar-nos a morrer». Stendhal iria bem mais longe, pela voz de Julien Sorel: «A pior das infelicidades na prisão é não poder fechar a sua porta.» Sendo a solidão uma exigência capital do indivíduo, nada se lhe afiguraria excessivo para assegurar que ela não fosse perturbada. Victor Hugo, esse, assumirá, não apenas por palavras, mas também por constantes e frequentes actos políticos, a fórmula célebre: «solitário mas solidário».

Flaubert refugia-se na sua semelhança com alguns animais para escapar ao mundo. Tinha dito, não contava mais do que vinte anos: «Sou um urso». Confessará a George Sand, quando se encontra a braços com a tarefa de concluir «A Educação Sentimental»: «Vivo absolutamente como uma ostra. O meu romance é o rochedo que me prende.» A Louise Collet, com quem não quer casar-se: «Tenho um grande desejo de me transformar em foca.» E outra vez a George Sand, que criticara a sua falta de sociabilidade: «Já não há lugar neste mundo para pessoas de bom gosto. É necessário, como o rinoceronte, refugiarmo-nos na solidão, esperando o momento de rebentar.»

J. D. Salinger, um caso excepcional de aversão à exposição mediática, tornou-se «invisível» desde 1950 e nada publicou, embora nunca tenha deixado de escrever, entre 1965 e 2010, data da sua morte. Declararia: «Há uma paz maravilhosa em não publicar. É sereno. Silencioso. Publicar é uma invasão terrível da minha vida privada. Gosto de escrever. Adoro escrever. Mas não escrevo senão para mim e para o meu próprio prazer.»

Com os filósofos, como seria de esperar, a solidão reveste de preferência uma carga ontológica, mesmo teológica. Relembremos Pascal: «Agrada-nos repousar na companhia dos nossos semelhantes: miseráveis como nós, impotentes como nós, não nos ajudarão. Morreremos sós. É preciso, portanto, fazer como se estivéssemos sós.» Em Kierkegaard, o eco do isolamento parece já anunciar «Assim Falava Zaratustra»: «A minha dor é o meu castelo senhorial, erguido lá em cima, como um ninho de águia, no cimo das montanhas, entre as nuvens: ninguém pode assaltá-lo.»

Mas eis a voz de Nietzsche, ele próprio: «Não somos daqueles que não conseguem pensar senão no meio de livros, sob o impulso dos livros – temos por hábito pensar ao ar livre, caminhando, saltando, escalando, de preferência nas montanhas solitárias ou mesmo junto ao mar, ali onde até os caminhos se tornam pensativos.» (…) «Na multidão, vivo como a multidão e não penso de acordo com o meu ser.» (…) «A filosofia, tal como sempre a compreendi e vivi, consiste em viver voluntariamente nos gelos e nos cumes». O filósofo foge, pois, da vida gregária, com o intuito de poder pensar em liberdade, sem o constrangimento das sociedades, dos governos, das religiões, das opiniões públicas, das tiranias multitudinárias.

O escritor congolês Alain Mabanckou «invade» sem cerimónias, e como uma rajada de ar levíssimo, este deprimente e terrífico espaço setentrional, que passa pelo concentracionário universo kafkiano d’ «O Processo», d’ «O Castelo» e do «Diário». Com um desconcertante sentido de humor, fala-nos de Robinson Crusoé. Para quem alguma vez pôs um pé em África, onde nasceu o autor de «Écrivain et oiseau migrateur», e conviveu com as suas gentes, as viu (sobre)viver e sofrer com uma estranha e imensa dignidade, faz-se luz: o náufrago saído do tão europeu cérebro de Daniel Defoe é-nos apresentado como a menos solitária possível das personagens de ficção postas em cena pela literatura do Velho Continente. A nossa ancilosada cultura muito dificilmente tornaria unânime tal interpretação, que noutras latitudes talvez possa ser apresentada como por de mais evidente.

De facto, Robinson vai surgir-nos na pele de um destemido aventureiro, nada atreito a complexas angústias existenciais, tranquilo, mesmo muito tranquilo, na medida em que sabe que «a solidão não é mais do que a ideia que fazemos do afastamento, do outro lado, do que não podemos perceber senão por meio da imaginação, mesmo por meio das nossas mais absurdas obsessões». Em suma: numa outra cultura, a africana de Alain Mabanckou, quase tudo o que ficou sugerido pelos nossos torturados intelectuais não teria sentido. Isto, claro está, para homens ditos «comuns» como Robinson Crusoé, nem escritor nem filósofo, apenas um náufrago lançado para uma ilha deserta das Américas, onde vive durante mais de um quarto de século. Um homem «comum» que talvez nunca tivesse sequer ouvido soletrar a palavra «metafísica», mas que não desconhecia o poder inesgotável do trabalho que lhe possibilitaria enfrentar e vencer, sozinho, a solidão.

Le Magazine Littéraire, «La Solitude», Julho/Agosto 2011, 106 páginas