De «Platão» a Cioran

António Rego Chaves

Hesitei antes de começar a escrever sobre este livro. Sucedeu que passara alguns dias a folhear e ler aqui e ali um gordo volume de 1818 páginas com várias obras do grande ensaísta romeno E. M. Cioran (1911-1995) e, olhada a contracapa deste livrinho com «Platão» no título, suspeitei logo de que iria encontrar algo que não me agradaria. Transcrevo: «Finalmente, uma hilariante e irreverente viagem pelas grandes escolas, tradições e pensadores filosóficos. ‘Platão e um Ornitorrinco Entram num Bar…’ é um livro para todos aqueles que não querem levar demasiado a sério as coisas sérias. Não precisa de saber muito de filosofia para desfrutar em pleno deste livro, pois está escrito ao estilo de Marx (Groucho, não Karl). Os autores, ambos licenciados em Filosofia por Harvard, tiveram o cuidado de não deixar nada de fora e, como tal, através deste divertido livro qualquer leitor compreenderá as grandes ideias da filosofia ocidental e fará uso delas da melhor forma possível: com humor. O livro provoca o riso, mas também deixa o leitor a pensar. É um autêntico curso intensivo em que se explica a filosofia através de uma série de anedotas e de histórias cómicas. Será difícil negar que esta é a melhor forma de abordar uma disciplina vista por muitos como séria, maçuda e inacessível.» Seguem-se as biografias de Thomas Cathcart e Daniel Klein, informando-nos de que o primeiro estudou teologia, ao passo que o segundo «escreveu guiões para cómicos muito conhecidos nos EUA, como Lily Tomlin e Flip Wilson».

Ciente da minha inata incapacidade de achar graça a livros que pretendem ser engraçados, lá fui lendo o livrinho com «Platão» no título, quase desesperado por não poder voltar a consagrar a minha atenção a Cioran. Dez capítulos (Metafísica, Lógica, Epistemologia, Ética, Filosofia da Religião, Existencialismo, Filosofia da Linguagem, Filosofia Social e Política, Relatividade, Metafilosofia), excelente concepção gráfica, cronologia e glossário com previsíveis pretensões humorísticas. Chegado ao fim, detectada a falta de rigor de múltiplas asserções e algumas ingenuidades da tradução (a Berkeley, bispo anglicano, chamam-lhe Bishop George Berkeley, como se Bishop fosse um nome próprio; a ataraxia dos estóicos, dos epicuristas e dos cépticos é reduzida ao estatuto de uma doentia «apatia»; «Ser e Tempo», de Martin Heidegger, surge como se fosse um título em língua inglesa, ou seja, «Being and Time»; «bon appetit» (sic, três vezes sem acento) aparece como significando «bom proveito») – chegado ao fim, dizia, dei o meu precioso tempo por mal empregado. Explico, exemplificando com o capítulo «Existencialismo» e chamando a atenção para o facto de os dois autores possuírem obviamente uma redutora formação filosófica anglo-saxónica não servir para explicar, muito menos para justificar, todos os seus por vezes graves «deslizes», omissões e abusivas simplificações.

Diz quem sabe que o existencialismo contemporâneo arrancou de Kierkegaard, cujo pensamento anti-hegeliano influenciou filosofias tão diversas como as de Karl Jaspers, Gabriel Marcel, Soloviev, Chestov, Berdiaev, Martin Buber, Max Scheler, Paul Landsberg, Maurice Blondel, Nietzsche, Unamuno, Heidegger ou Sartre. Que fazem os autores deste «Platão»? Estabelecem a diferença entre o sistema hegeliano (utilizando a imprecisa terminologia tese/antítese/síntese em vez de afirmação/ negação/negação da negação) e o anti-sistema kierkegaardiano inventando uma anedota brejeira, preocupam-se com o estrabismo divergente de Sartre e referem-se ao seu «colega existencialista» (!!!) Albert Camus, contam mais três anedotas, abordam Heidegger e debitam umas tantas gracinhas sobre o seu «ser-para-a-morte» – e está «despachado» o sexto capítulo, já falta pouco para receberem os direitos de autor.

Ensinaram-me em tempos que não se brinca com coisas sérias. Mais tarde, ao tomar consciência do «humor negro», tal como o entendeu um André Breton, soube que este nada tem a ver com uma brincadeira – sendo mesmo uma coisa muito séria. Por isso me é tão difícil aceitar este «humor» que tudo observa com futilidade, ausência de bom-gosto, leviandade. Acresce que, na conjuntura portuguesa, o «caso» assume aspectos verdadeiramente nefastos, já que possuímos indícios seguros de que algumas – ou mesmo muitas – «cabeças» da «classe política» que nos dirige consideram a Filosofia não apenas desastrosa em termos contabilísticos, como um empecilho para as gerações que, no mercado de trabalho, parecem condenadas a ser cada vez mais competitivas – ou desempregadas – e a lutar com quantas unhas e dentes tiverem, sem qualquer espécie de escrúpulos, por um lugar ao sol do século XXI.

Permiti-me, pois, que regresse ao «meu» Cioran, que em 1977 declarava: «Creio que a filosofia já não é possível senão enquanto ‘fragmento’. Sob a forma de explosão. Já não é possível, em boa verdade, pormo-nos a elaborar capítulo após capítulo, sob a forma de tratado. Nesse sentido, Nietzsche foi eminentemente libertador. Foi ele quem sabotou o estilo da filosofia académica, que atentou contra a ideia de sistema. Foi libertador porque, depois dele, podemos dizer tudo… Agora, somos todos fragmentistas, mesmo quando escrevemos livros aparentemente coordenados.» E em 1992: «Considero que a Universidade liquidou a filosofia. Talvez não inteiramente, mas quase… Não iria até concordar com os exageros de Schopenhauer, mas há muito de verdadeiro nas suas críticas. Creio que a filosofia não é de modo algum um objecto de estudo. A filosofia deveria ser uma coisa pessoalmente vivida, uma experiência pessoal. Deveríamos fazer filosofia na rua, entrançar em conjunto a filosofia e a vida. Sob muitos pontos de vista, considero-me de facto como um filósofo da rua. Uma filosofia oficial, uma carreira de filósofo? Nada disso! Durante toda a minha vida me opus, e continuo a opor-me, a tal coisa.»

Lede agora este «Platão e um Ornitorrinco», se assim vos aprouver, mas não abdiqueis de conhecer Cioran. Não desperdiçareis o vosso tempo.

Thomas Cathcart e Daniel Klein, «Platão e um Ornitorrinco Entram num Bar», Dom Quixote, 2008, 244 páginas