Hans Blumenberg («Descrição do Homem»)

(Des)conhecimento do homem

António Rego Chaves

«Descrição do Homem», obra póstuma de Hans Blumenberg (1920-1996), constitui um muito intenso e extenso esforço, com cerca de oito centenas de páginas, para elaborar o que poderia também ter sido chamado «Tentativa de Tratado de Antropologia Filosófica». Não são apenas a ciência, a teologia e a literatura que o autor convoca para alicerçar a sabedoria que procura: omnipresente, a fenomenologia parece, a um tempo, inspirar e espartilhar a criatividade do ensaísta, dada a implícita «proibição» de acesso a uma antropologia imposta por Edmund Husserl aos seus seguidores. E, no entanto, não poucas vezes ao longo destas páginas densas, laboriosamente tecidas e por vezes crípticas, Blumenberg, que em 1947 se doutorou com uma tese consagrada ao «pai» da fenomenologia, parece querer apresentar-nos, a par de um «husserlianismo real» com Husserl, um «husserlianismo ideal» sem Husserl, mas porventura mais capaz de nos dar conta do «mundo da vida».

Se Edmund Husserl se confrontou sempre com o cartesianismo, dir-se-ia que Hans Blumenberg se concentrou sempre no husserlianismo. Daí ficar muito clara a impossibilidade de abordar «Descrição do Homem» sem ter bem presente o autor das «Meditações Metafísicas»: simplificando, mas não deturpando, este texto de Hans Blumenberg não se fica por «emendar» Husserl; visa mais longe, ao facultar-nos uma outra visão do cartesianismo.

Esclarece Denis Trierweiler no prefácio desta sua cuidada tradução: «Será necessário, em primeiro lugar, explicitar as razões da fobia da antropologia no interior da fenomenologia. Assim, quando Husserl fala de consciência, confere uma grande importância ao facto de não se tratar, neste caso, antes de tudo, da consciência humana, mas da consciência no absoluto, da essência da consciência.» Estava assim retirada à fenomenologia qualquer possibilidade de se ocupar de uma antropologia, dado que a consciência, o «eu puro», o sujeito transcendental de que fala Husserl não é um eu humano, ou seja, próprio do «Homo sapiens sapiens». Trata-se, sim, de uma gélida estrutura gnosiológica, descarnada, decerto muito apta a tomar conhecimento de «objectos» reais ou ideais, mas não das «coisas em si».

Coube a Hans Blumenberg, pois, ocupar-se do homem de carne e osso, «do homem que sofre, que se procura, que se interroga, que se cultiva, que edifica sistemas filosóficos e inventa as ciências exactas, e que também quer cumprir a sua vida.» (…) «O que pode, e deve, realizar uma antropologia fenomenológica é responder à pergunta: ‘mas então o que é que tínhamos querido saber acerca de nós próprios, enquanto homens?’»

Ainda Denis Trierweiler: «Blumenberg quer uma antropologia porque compete à filosofia falar do homem, e compete ao homem falar de si, aí reside a sua dignidade.» (…) «A antropologia deverá ser, custe o que custar, uma disciplina filosófica, mas além disso fenomenológica, porque é na fenomenologia (de Husserl) que a filosofia atinge o seu grau da mais alta qualidade de pensamento. Blumenberg não renuncia à filosofia porque, segundo ele, a filosofia não pode renunciar, porque não tem nada nem ninguém por detrás dela para recolher as perguntas que são as suas.»

Mais de metade desta «Descrição do Homem» vai perder-se, porém, na discussão do husserlianismo, bem como da legitimidade e racionalidade de, à sua luz, edificar uma antropologia fenomenológica, sem «entrar» verdadeiramente no tema que o autor pretende desenvolver. Só nas últimas trezentas páginas, em quatro capítulos, aliás fascinantes («O risco da existência e a prevenção», «A necessidade de consolação do homem e a impossibilidade de satisfazer essa necessidade», «Carne e consciência da realidade», «Variações da visibilidade») Blumenberg trata de satisfazer a nossa curiosidade de conhecer a sua abordagem dos problemas do «Homo sapiens sapiens», deixando de lado a contestação das ideias de Heidegger, Arnold Gehlen ou Max Scheler, de alguma forma seus «adversários» no que se refere à concepção da fenomenologia ou da antropologia filosófica.

A conclusão da obra – se assim se pode chamar à sua derradeira página – põe em xeque ou, no mínimo, incita à tematização de inúmeras afirmações produzidas nas páginas precedentes, o que não deixará de contribuir para a perplexidade do leitor que julgou, até então, ter encontrado algumas respostas, ainda que provisórias, para questões antropológicas tidas pelo autor como de primeira grandeza: «Considero que desde Descartes a relação entre subjectividade e objectividade se inverteu exactamente no seu contrário», isto é, que a certeza do mundo substituiu a certeza de si assente no ‘cogito’.» (…) «Tornámo-nos mais seguros do mundo do que de um si que se revelou frágil e infiltrado, simples superfície de uma profundidade desconhecida, exposto a surpresas e a emboscadas endógenas. Aí reside a espantosa perda de actualidade de tudo o que outrora se chamava teoria do conhecimento e que dominou amplamente o conteúdo da filosofia actual.» (…) «É uma concepção ilusória a de que existiria uma crise dos Tempos Modernos devido à falta de fiabilidade dos seus fundamentos filosóficos. A crise não é a do acesso do sujeito aos seus objectos; nada foi mais brilhantemente confirmado do que este acesso. A crise reside na inacessibilidade do sujeito a ele próprio, na percepção surpreendente da sua opacidade, não somente, e não primariamente, para os outros.»

«Traduzindo», ou comentando, se é que isso se torna pertinente: a concretização do famoso «conhece-te a ti mesmo» – decerto uma das mais válidas razões de ser de qualquer antropologia filosófica – estaria hoje tão longe dos homens, mesmo dos mais «sábios», como nos tempos do oráculo de Delfos. Ainda nem a nós próprios nos conhecemos – e dificilmente tal virá a suceder com as armas mais ou menos científicas que temos na mão…

Hans Blumenberg, «Description de l’homme», Les Éditions du Cerf, 2011, 830 páginas